O TOURO HOLANDÊS

 

Liberato Póvoa

26/05/2005

 

Dizem que o coronel Afonso Carvalho era pobre, paupérrimo, a ponto de, certa vez, ter de vestir um saco de estopa amarrado pela cintura, porque, durante um banho de córrego, uma vaca comedeira de roupa levara sua calça única, atraída pelo sal do suor.

Muita gente diz tê-lo conhecido sem um centenário no bolso, andando com os pés esparrados no chão, bebendo cachaça e caçando briga.

Virou amigo de meu pai, de quem era compadre e com cuja sobrinha se casou, porque, de certa feita, meu pai o impedira de matar um desafeto, nos seus tempos de pobreza e valentia.  Por ter evitado tornar-se um criminoso, meu pai ganhara um fiei amigo.

Ficou rico, dono de loja, casa boa, fazenda e outras propriedades.  Mas sua riqueza não foi sem causa.

Começara com urna carguinha de couro, uns amarrados de pena de ema, umas graminhas de ouro, caminhando sessenta e tantas léguas, tocando um jegue cargueiro para vender à Casa Braga, exportadora de Barreiras, na Bahia.  Honesto, pagava religiosamente seus compromissos e os Braga foram fornecendo-lhe cada vez mais mercadorias.

Afonso botou pra frente, sempre merecedor da confiança dos Braga.  De em­pregado de Marcos Rodrigues, passou a patrão, mas manteve o vizinho e amigo sempre amparado, ganhando a vida como caixeiro da loja, enquanto sustentou o comércio.

Conversador, bom de papo e sempre cheio de assunto (que ele contava com um jeito todo afobado de rir mais do que conversar), foi vereador, presidente da Câmara e muito influente em São José do Duro.  E sentia verdadeiro prazer quando lhe afirmavam, a riquezona e lhe gavavam a loja, o carro, a fazenda Beira d'Água, pois ele não escondia - ou, por outra, fazia até questão de propalar - que era rico, que não de­via nada a seu ninguém e que tudo que tinha estava "compro e pago".

Vaidoso, sem ser petulante, era quem primeiro chegava com as últimas novidades.  Nessa megalomania, incluía o gado da Beira d'Água, que era bom, mas quando ele soube, numa revista, da existência da raça holandesa, mandou buscar, não sei onde nem como, um touro, que seria o primeiro representante estrangeiro no município.

Para não correr o risco de degenerar o sangue de sua gadama boa, seus vaqueiros, Oliveira e Otávio, tinham ordens expressas de castrar qualquer curraleiro que entrasse nos seus domínios, pois não queria misturar o sangue de pé-duro com seu rebanho apurado, que Afonso Carvalho queria ser o melhor em tudo.  Com o advento da riqueza, até um "coronel" acrescentaram-lhe ao nome.

Quando o touro chegou à Beira d'Água, os vaqueiros estavam viajando para os gerais, aonde na seca o gado era levado para uma temporada de refrigério.

O touro - que embora aparentemente não mostrasse raça alguma, pelo berro, pelas orelhas e chifretes sem fé - custara uma fortuna, e Afonso dizia maravilhas da raça: muito leite, mansidão e a característica cor chitada, ainda mais que estava se tornando raridade gado cirigado nas rodeanças do Duro.  E ele imaginava a Beira d'Água um dia salpicada de preto e branco, substituindo aos poucos as cores moura, alvaçã, raposa e mestiça que toda rês de ordinário mostra.

Voltando dos gerais, Oliveira e Otávio vieram à rua prestar contas ao patrão e padrinho.  Contaram os casos de atoleiros, de sucruiú e onça, que, graças a Deus, não haviam bulido com o gado naquela quadra de ano.

- Mas na Beira d'Água, meu padrim - era Oliveira - tinha gado estranho na manga de pasto.

- Botaram pra fora, né? - disse Afonso, todo satisfeito.

- Realmente, meu padrim, realmente! - respondeu Otávio - Mas, de conformidade com as orde de meu padrim, capamo primeiro antes de soltar.

- Fez bem, fez muito bem!

Afonso sentia-se poderoso, dador de ordem.

- E tinha marca de alguém? – indagou.

- Inhor não, meu padrim, mas era pé-duro de chifrim mirrado...

- Fez bem, fez bem!  Pé-duro não quero na Beira d'Água!  E se o dono apare­cer, eu pago, né mesmo? É só reclamar.

Aí, Oliveira ainda comentou, para arrematar o caso:

- Eu, mais compadre Otávio, tivemo um trabaio danado mode recantiar aquele patueirim chitado, né, compadre?

- Chitado?! - Afonso sentiu uma coisa.

Oliveira e Otávio tinham castrado o precioso holandês, sem ao menos deixar uma solitária cria.

       

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