FOGO CRUZADO
Liberato Póvoa
30/05/2005
Chico
Me-Dá era temido mandraqueiro. Mesmo
antes de "proibir" a fornalha de Honorão de pegar fogo, fazendo-o
perder a garapa na moagem, Chico Me-Dá era respeitado.
E para completar o círculo de feitiçarias nas Bicas, onde morava, sua
mulher era tida e havida como feiticeira também.
Tida, não: era feiticeira mesmo, segundo os mais antigos, que deles só
alcancei a notícia.
Chico
e a mulher viviam às turras, feito cachorro e gato, sempre trocando
desaforos. Chico tacava um feitiço
nela, e a velha passava uma semana dormindo. Era um sono irresistível.
Ao fim de uma semana, ela se levantava, ainda bamba, mercê do jejum
forçado. Era só recuperar-se um
pouquinho, botava um feitiço em Chico Me-Dá, que dormia por igual período.
E viviam naquele fogo cruzado, semanas e semanas um botando o outro
pra dormir.
Meu
pai, escrivão de coletoria (naquele tempo havia esses cargos) lá pelos anos
vinte, acompanhava seu cunhado, o coletor (também havia uma
familiocraciazinha disfarçada) até a fazenda Água Boa, onde este morava. Meu pai residia meia légua adiante, no Santo Antônio, e
estava apenas esperando um cafezinho pra poder medir estrada no rumo de casa.
Nesse
ínterim, chegou uma desconhecida de meia idade, mas toda alquebrada, apoiada
num bordão, dando a impressão de que, se lhe puxassem o apoio, o tombo era
certo.
-
Uma esmolinha, pul'amô de Deus!
-
Pede a Emídia lá dentro, dona! - ordenou o coletor, que, pelo jeito,
conhecia a pedinte.
Voltando
da cozinha, onde recebera um agrado, a mulher estendeu a mão para meu pai,
pedindo também.
A
mulher saiu vagarosamente, gemebunda, apoiando-se no bastão com todo o peso
do corpo, e meu pai indagou:
-
Quem é, Joãozim?
-
É a mulher de Chico Me-Dá, Bera! Pra
ser direito, nem sei o nome dela.
-
Coitada!... Vai chegar lá no Santantônio à boca da noite!. . . - ainda
comentou meu pai, todo condoído, vendo a pobre esmoler quebrando a curva da
estrada que dava pro Santo Antônio, com o peso debruçado sobre o bordão.
Com
menos de dez minutos, meu pai chinelou na estrada, no seu caminhar ligeiro,
que dispensava montaria para viagem de légua e légua e meia.
Andou, andou, e nada de topar com a muher de Chico Me-Dá.
E ele tinha fama de caminhador.
Apertou o passo, no rastro da
velha, que denunciava estar adiante, e numa curva lá longe, no lugar por nome
Estreito, ele enxergou a mulher, andando desembaraçada, levando o bastão
mais no feitio de arma do que de arrimo.
Acelerando
o passo, ele cortou caminho pela chapada, e, desviando-se dela por dentro do
mato, chegou ao Santo Antônio. Lá,
ficou atento, pois sabia que ela estava chegando a qualquer momento.
De fato, Pouco depois, ela
apontou no canto da cerca de arame que ficava no mesmo alinhamento da casa
da fazenda, a coisa de trezentos metros; vinha recurvada, apoiada no bastão.
Uma aproveitadora, era visto.
Dando
de cara com meu pai, que ela deixara na Água Boa, a mulher ficou descabreada,
ainda mais na hora em que ele comentou, só de gauchada:
-
Andou ligeiro, hein, dona!
Ela,
numa sengraceza danada, gungunou algo ininteligível, sempre de cabeça baixa.
Meu pai, que era muito positivo e meio cético para essas histórias de
mandraquice, disse:
-
Dizem que você é feiticeira...
-
Inhor, não, "seu" Liberato; é istúcia e indaga do povo.
Ele
foi lá dentro e pegou um volumoso Chernoviz, aquele livrão de prescrições
médicas.
-
Tá vendo? Tudo aqui é feitiço.
Escolho à minha vontade e de acordo com a necessidade! - e foi
folheando o livrão, para continuar - Você já deve ter esquecido muitos dos
que lhe ensinaram. Eu, quando
esqueço, corro no livro e recordo tudo.
E tenho feitiço até para fazer chover fogo.
Por isso, não tenho medo desses feiticinhos bestas!...
Com a esmolinha no saco, a mulher de Chico Me-Dá, muito sem jeito, tratou de pegar a estrada das Bicas, onde, seguramente, o marido já a esperava para fazê-la dormir mais uma semaninha...