BERTO

 

 

Liberato Póvoa

05/06/2005

 

Nos fins de semana, chegava Berto, com um balaio enorme cheio de coisas de roça: mandioca, batata doce, banana-três-quinas e farta-família, maxixe, quiabo e ou­tras quitandas para oferecer de casa em casa.

- Quanto é a mandioca, Berto?

Naquela voz mansa e preguiçosa, Berto arriava o balaio e dava o preço:

- É duas raiz pel’um minréis. . . - respondia numa frase curta, que, por conta de sua conhecida paciência, era um nunca acabar.

- Então, me dê um mil réis de mandioca e se o preço for o mesmo de sempre, completa o troco em banana e batata.

- Tira aí... - e na sua inocência brejeira, virava-se de costas para que o freguês pensasse que ele estava maldando de ninguém.  O próprio freguês era quem tirava a mercadoria do balaio, com Berto virado pracolá, e se ninguém contava uma dúzia de bananas com quinze unidades ou um mil réis de mandioca com quatro raízes em vez de duas, era porque a confiança que ele tinha em sua fre­guesia não merecia ser traída por umas coisinhas a mais.

Pés rachados esparramados no chão, mãos calosas de segurar o cabo de fer­ra­menta, roupa de algodão caroçudo tecido no tear da roça, Berto entrava em tudo quanto era casa, vendendo uma coisa aqui, outra acolá, recebendo o agrado de uma xícara de café, um prato de arroz com feijão inteirado com farinha.

Quase não conversava, e quando o fazia era apenas para pedir a benção pros mais velhos ou oferecer o que trazia da roça:

- Ancê qué batata? - indagava com a fala arrastada.

Um dia, pela primeira vez na vida, vi Berto contrariado, e, apesar de menino, pouco sensível aos problemas que se passam no lado de dentro das pessoas, quis sa­ber o porquê.  Era de tardezinha e seu balaio, que sempre ao meio-dia já estava de­so­cupado, ainda estava àquela hora pra cima do meio.

- Que é que você deixou de vender, Berto?

- Os mamão... lnfusaro tudo.

- Uai, Berto, nunca infusa nada que você traz... sempre você vende tudo...

Ele coçou a cabeça, baixou o balaio pra poder conversar e mostrando-o, disse:

- O povo aqui parec'inté qui abusô de mamão, apois ninguém compra.

- Nem vô mais tê trabaio de tirá mamão na roça.  Vão fica lá é pros joão-congo engordá.. .

Acabou distribuindo aos fregueses os que sobraram, pra não voltar carre­gando peso morto, que ele mesmo nem comia mamão.

No dia seguinte chega Berto, com um enorme sorriso nos lábios emoldurados pela barba negra e fechada, dizendo que tinha descoberto a causa do problema dos mamões infusados.  E depois de ar­riar o balaio, falou com um quê de sapiência, que pra ele não era de duvidar, pois conversava pouco justamente para ficar assuntando as coisas e tirando uma linha:

- Adispois qui zanzei qui nem besta, cum o balaio pesado na cacunda, é qui ar­reparê qui todo quintale aqui da rua tem um pé de mamão carregado.  E pensá qui eu surupembava no quebrá da barra mode trazê esses infiliz. . .

Berto morreu.  Morreu o Berto que andava de balaio na cabeça vendendo por quase nada as quitandas trazidas da roça.  O progresso, os supermercados, as mer­cea­rias mataram-no.

E nasceu um outro Berto, um Berto diferente, sem a roupa de algodão grosso e caroçudo e sem o balaio à cabeça; um Berto que tomou um banho de loja e foi con­ta­giado pelo progresso; um Berto mais malicioso, que já não vira a cara pracolá quando con­versa com a gente, falando até em aposen­tadoria pelo Funrural.

Eu gostava mais do outro. de meus tempos de menino.

       

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