A TROPA UBÍQUA

 

Liberato Póvoa

21/05/2005

 

 Desde 65, labuto no serviço público, tendo passado por chefias, diretorias, burocracia simples, enfim já fui de tudo como gente que trabalha pro governo.  Assim, mais do que ninguém conheço as manias do funcionário, que usa de mil artifícios para burlar o trabalho.  Desde as doenças na família, as mortes providenciais de pa­rentes e o clássico papel do paletó na cadeira, tudo isto é motivo para o nosso barnabé enforcar o serviço ou fugir dele após bater o ponto.  Há funcionários (isto, na capital, pois no interior todo mundo conhece todo mundo) que não tem mais pai, mãe, tio, avô e outros ache­gados, que já foram enterrados para justificar ausências.  Mas o paletó, realmente, é utilíssima indumentária, não como vestimenta, mas para marcar a presença do funcionário no seu local de trabalho.  Com o paletó ali no encosto da cadeira, está garantida a desculpa para as fugas do serviço.  Quando alguém pergunta pelo funcionário, respondem naturalmente:

- Está por aí. . . O paletó dele está na cadeira.

Com o paletó na cadeira de trabalho, está garantido o cineminha, uma fugidinha e até um eventual "bico" fora.

A presença do dirigente da repartição modifica totalmente o ambiente de trabalho: na frente do chefe, o funcionário quer mostrar-se eficiente, trabalhador, ativo e útil.  Com o chefe "na casa", ele está sempre com um processo sendo compulsado, um telefonema, para que a imagem seja a de quem está trabalhando. Diante de qualquer viagenzinha do superior, a repartição esvazia-se, pois ninguém fiscaliza ninguém (e quem não precisa sair de vez em quando?). É flagrante o contraste da repartição com o chefe e sem ele.

Mas esse negócio de fazer fachada não é treita privativa de servidor público de cidade grande.  Conheci um prefeito da vizinha Natividade que, sendo um dos políticos mais hábeis dali do interior, aprontou uma de deixar de queixo caído o mais fi­nó­rio dos funcionários vivaldinos da capital.  Hoje, ele reside em Goiânia, e se me furto a mencionar-lhe o nome é porque o caso é por demais conhecido por aqui e não quero sair das minhas amenidades sertanejas para caçar briga com seu ninguém.

No tempo de Juca Ludovico, inexistindo estradas e veículos em todos os lugares, o escoamento da produção era feito por tropas.  Havia tropas de vinte, trinta jumentos, que vinham trazer arroz, feijão, milho, penas de ema, couro e outras coisas e levar sal, café, querosene, medicamentos, etc.  E os animais cargueiros entravam na rua chacoalhando as bruacas e tilintando os chocalhos, dando um ar de progresso à cidadezinha aqui do nosso interior.

Em Natividade, a prefeitura mandou fazer um campo de pouso a um quarto de distância da rua, onde pousava o teco-teco do Estado nas épocas de caçar votos ou de visita de alguma grandoria do governo.  Aliás, o campinho de pouso até teve seus dias de glória, quando a Cruzeiro do Sul incluiu Natividade na rota Goiânia/ Belém por muito tempo.  Mas, acabando-se o "vôo da fome", voltou o campinho à utilidade de sempre.

Um dia, o prefeito recebeu a notícia de que o governador iria passar em Natividade, onde da­ria uma volta em toda a cidade: iria à prefeitura, visitaria obras, hospedando-se na casa do prefeito, onde almoçaria, retornando à tardezinha.

O prefeito mandou arrancar as malvas da praça, ciscar o lixo das ruas, fazer bandeirolas para enfeitar as esquinas onde passaria Sua Excelência e até traçou um programa para dosar adequada­mente a curta, mas preciosa, permanência da grande autoridade, cuja visita poderia render-lhe prestígio... e verbas.

O homem chegou, ficando muito bem impressionado com a cidade.  Quando estava na varanda da casa do prefeito, viu passar uma enorme tropa tilintando chocalhos e estalando tacas para dobrar a primeira esquina adiante.  O prefeito explicou que era o meio de escoamento da produção e que naquele interior o progresso era medido pelo número de tropas que entravam e saíam.

Ao chegar à prefeitura, a comitiva oficial foi interrompida por outra tropa, que durante alguns minutos tomou conta da rua, tangida pelos arreeiros, ante os olhares satisfeitos do prefeito e do governador, este já impressionado, a ponto de perguntar:

- Prefeito, esse movimento é constante aqui?

O prefeito, com um ar de naturalidade e até descanso, respondeu:

- Não, Excelência, agora está pequeno.  O movimento maior é na safra.  Pena que não tenha­mos estradas e recursos para melhorar a região.

E durante o dia, o governador viu passar tropas à sua frente, pois em todas as esquinas por onde passava via, invariavelmente, uma tropa.

E retornou a Goiânia com a melhor das impressões da próspera Natividade, disposto a prestigiar o diligente prefeito e ajudar a região com os melhoramentos possíveis.

Mal sabia o governador que o astuto prefeito, macaco velho na política, contratara uma tropa sem carga nenhuma, para, durante a estada do homão, cruzar a cidade o dia inteiro, sempre nos locais onde a comitiva estivesse, para dar a impressão de muitas.

E, se não me falha a memória, no pleito seguinte, ele chegou à Assembléia, mostrando que, para quem tem cabeça e esperteza, até bruaca vazia pode ser preciosa para subir na política.

       

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