O VAQUEIRO QUE VIROU ALCANFOR

 

Liberato Póvoa

03/07/2005

Li certa vez, parece que numa publicação avulsa que abordava fenômenos inexplicáveis, que existem inúmeros casos de pessoas que, sem mais nem menos, desapareceram.  Não sumiram como somem muitos, correndo de dívidas ou mesmo por motivos de Justiça atrás ou até por razões ideológicas.  Estas não desapareceram, no sentido exato da palavra, mas apenas saíram de cena, passando a viver em outro lugar, com nome falso.  O livro “Os Subversivos”, de um ex-espião tcheco (cujo nome não me ocorre) relata numerosíssimos casos de pessoas que, industriadas pela KGB (serviço secreto soviético), anoitecem e não amanhecem no local, passando a viver sob nome falso e uma estória-cobertura adequada noutro país.

Estou falando é de pessoas que, sem notícias de seu paradeiro, sem indícios de haverem morrido, simplesmente "sumiram do mapa".

Certa época, conversando baba de quiabo com uma turma de curiosos lá do Duro, uma pessoa falou no assunto de gente que desapareceu misteriosamente, "virando alcanfor", como diz nosso filosófico sertanejo.  Cá comigo, apesar das notícias que são veiculadas sobre a visita de extraterrenos e do testemunho de Erich von Danniken em "Eram os Deuses Astronautas", continuei meio banzo na história, sem querer acreditar.  Especulei praqui, pracolá, e ninguém me deu sintoma de um caso ocorrido.

Apois bom: dias depois, indo a Barreiras, na Bahia, com Pedrinho Açougueiro ver, como ad­vogado seu, umas terras enroladas que ele tinha lá pras bandas de Formosa do Rio Preto, proseamos um bando, e ele, muito do bem informado sobre as coisas da boa terra, falou-me num vaqueiro que desaparecera misteriosamente quando campeava com um companheiro lá pros lados do Brejo de Cariparé, pra lá do Riachão das Neves.

Apesar de não ser inédita a notícia de tais desaparecimentos, pois eu já lera a respeito, achei que era uma preciosa oportunidade de tirar a limpo aquele causo, comentadíssimo na Bahia.  E estando em Barreiras, resolvi esclarecer o assunto, para descobrir, de uma vez por todas, se era verdade ou abusão do povo.

Cariparé fica a cerca de cem quilômetros de Barreiras, e, levando Pedrinho a tiracolo, fomos bater lá justo na região onde se dera o misterioso desaparecimento.

E lá escutei, ao vivo, da boca de quem conhecia o vaqueiro, cuja mãe ainda morava ali nas imediações de Canudos (que não é o do Conselheiro).

Chamava-se Mamédio, filho da velha Chica Preta, e vaqueiro do finado Chiquinho dos Santos, na fazenda Vargem do Meio, a 3 léguas ali do Cariparé.  Um dia, campeando com um seu companheiro da mesma fazenda, Mamédio rasgava a jurema da caatinga ajuntando o gado do patrão, e seu companheiro ali perto, de forma que percebia o movimento de Mamédio.

Como é norma na Bahia, mercê do trançado de espinho da caatinga, o vaqueiro vive é encourado, com gibão, peitoral e perneira.

Os dois vaqueiros labutavam no ramerrão de sempre, um gritando aqui e outro acolá, atrás das brabezas de Chiquinho dos Santos.

De uma hora para outra, o companheiro não ouviu mais motivo de Mamédio, e, largando o gado, partiu em busca de companheiro, que era conhecedor dali como da palma da mão.  E briquitou em vão, gritando por ele, até disurir, voltando para casa, que já estava escurecendo.

No dia seguinte, cerca de dez vaqueiros pegaram o batido de Mamédio, pelo rastro da mula nos carreiras da caatinga.  E, misteriosamente, à medida que andavam, iam encontrando, em locais diferentes e muitas vezes distantes um do outro, as esporas enganchadas num pau seco, o gibão de­pendurado num toco, a perneira noutro lugar, dando a entender que Mamédio ia conscientemente livrando-se de sua indumentária, haja vista o cuidado em dependurar cada peça.  E mais intrigados ficaram quando ao cabo de três dias, encontraram o animal em que Mamédio montava, a mula: trespassada pela fome, roera a casca do pau onde fora amarrada, deixando-o liso desde o pé até onde seu pescoço alcançava.  E após dez dias de inútil busca, sem o menor sinal de carniça, de sangue ou notícia de moradores das vizinhanças, desisti­ram.

E daquele dia pra cá (já faz uns vinte anos), nunca mais se ouviu nadinha a respeito de Ma­médio.  O companheiro, que com ele campeava quando do misterioso desaparecimento, assombrou e largou a vaqueirice, e até hoje nem sei se sabe mais montar a cavalo.

Dizem - aí, já digo que deve ser abusão do povo - que encontraram um espoja­douro no meio da caatinga, para onde os rastros conduziram Mamédio, antes de se transformar num bicho, que, tempos depois, assombrou todo o povo das rodeanças pela peculiaridade como agia: matava os animais e comia-lhes apenas o mole da venta, não escapando boi, bode ou carneiro.

Daí pra frente, não posso garantir se a fantasia se mistura com a realidade.  O que posso dizer é que ouvi um bando de gente que conheceu Mamédio e que, como por uma só boca, garantiu que ele virou alcanfor.

       

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