DE ZEOUINHA, NÉ VELHO E CURSINO

 

 

Liberato Póvoa

04/08/2005

Lá pelo fim dos anos cinqüenta, chegaram lá no São José do Duro uns baianos e se alojaram com as famílias na Rua dos Grilos, perto da casa de Zé Amâncio: Zequinha, Zé Vital e outros, que logo se relacionaram com o povo, dando os filhos pra batizar, trabalhando para os fazendeiros da rua e mostrando uma prestimosidade que comprava a gente.  Zé Vital, por exemplo, me conferia um ar de importância, chamando-me de Xará, pois aquele tratamento era como se aumentasse minha idade pra virar gente grande, talqualmente ele.  E eu ficava todo cheio escutando Zé Vital conversar alegre, com a chapa da dentadura dançando-lhe na boca.

Mas o início foi difícil, principalmente para Zequinha, que ocupava uma casa aberta no curral de Quinca Valente.  A molecada, capitaneada por Jandir, irmão do dito Quinca, veio enfiar assombro na alma do pobre do Zequinha, que, chegante, não conhecia seu ninguém:

- Ói lá, moço, "seu" Quinca Valente não vai gostar dessa ocupação. É bom o senhor ir ter com ele!...

Zequinha, muito direito, pensou, repensou e resolveu ir falar com o tal homem dono do curral e da casa aberta, enfrentando a valentia daquele tal Quinca.  E foi.  Relutante, mas foi, assim no feitio de bode arrastado pra canoa.

Passou a manhã indo e vindo na calçada que pegava de fora-a-fora desde a esquina até Augusto Rodrigues, passando na porta de Quinca.  Ali, esperando Quinca, passou horas, até que este apareceu na porta com a inseparável canivete "Corneta", roletando um talo de munguba.  Zequinha mirou a cara fechada, os olhos esgazeados e sérios de Quinca, e aprochegou, dizendo, antes que o homem pudesse notar-lhe a presença:

- Bom dia, "seu" Quinca!  Tão dizendo aí que o senhor é valente, mas venho pedir pra relevar minha falta na ocupança de seu curral.. .

Nem chegou a completar, pois Quinca começou a ri, desacoroçoando Zequinha. O "valente" não era qualidade; era sobrenome: Joaquim de Abreu Valente.

É Zequinha ficou sendo foi agregado de Quinca.

Lá na casa de mãe, morava um patrimônio vivo de São José do Duro. Era o Né Velho.  Desde que me entendi por gente, já conhei Né Velho com a voz atrapalhada, boca aberta, caminhado miúdo feito rolinha fogo-apagou, dando notícia das coisas.  Manoel Corrente, mas é simplesmente Né Velho, atravessando a casa dos mais de setentanos, morando com minha mãe, como gente da família, continuando a tradição de ver passar sob o teto aqui de casa quatro gerações dos Corrente: a velha Maria Corrente (mãe), Chica (irmã), Maria Corrente (filha de Chica, sobrinha de Né) e Nádia (filha desta e sobrinha-neta de Né).  As duas primeiras morreram, as duas últimas foram-se embora.  Ficou Né.

De primeiro, ele morava com tia Diana Póvoa, carregando leite e ombreando feixe de lenha do Progresso para a rua.  Em certa época, a velhice de Né não combinou mais com a de tia Diana, e ele danou a estampar valentia pra riba dela, e meu pai carregou-o aqui pra casa, e foi quem ficou fazendo companhia a minha mãe nos seus solitários dias de viuvez.

Né desconhecia até mesmo a idade, respondendo que tinha sete, cinco e vinte anos, mas minha mãe, reunindo trapos de reminiscências e retalhos de informações aqui e acolá, conseguiu registrar Né e arranjar-lhe uma aposentadoria pelo Funrural, pelo menos para roupas e remédios, que ele padecia de uma asma desgramada, que de vez em quando o fazia sofrer demais.

E no seu não dizer coisa com coisa, Né Velho era um retrato vivo dos dias antigos por que o Duro passou e cujas ruas experimentavam diariamente o caminhar miúdo dos pés rachados que só agora pouco tempo antes de ele morrer vieram tomar contato com uma alpercata arreada.

Joaquim Cursino sempre morou no Santo Antônio, enquanto viveu.  Primeiro, com Chica Corrente (irmã de Né) e depois com Rosaura, assim meio "passada no brejo", gorda em despropósito, dizendo o povo que, levada pelo juízo meio ralo, tomou tártaro pra morrer e, errando na dose, fez foi engordar.

Cursino vivia da rocinha numa ponta de mato e de trazer areia da Água Boa para arear trem, mangaba, puçá, caju, coco macaúba e outras burundangas que a natureza oferecia nas quadras de ano, para, em troca, ele trazer da rua o que lhe faltava: café, sal, fumo, rapadura.

Prestativo, serviçal, disposto a fazer tudo para agradar, Cursino vivia arqueado por um escadeiramento causado pelo peso.  Dava a vida e um pedaço da alma para agradar a meu pai, seu padrinho, e em cujas terras morava.  E uma noite, tendo que mandar alguém à rua para uma precisão qualquer; meu pai chamou-o:

- Cursino, amanhã, ao romper do dia, quero que você vá lá na rua pra mim. Mas tem que ser cedo!

No dia seguinte, apesar de meu pai acordar com as galinhas, cedeiro demais que era, já encontrou a rede de Cursino vazia.  Indagou, mas ninguém dava notícia.  Lá para o meio-dia chega Cursino, suado que nem tampa de cuscuzeiro, mas com uma satisfação enorme de dever cumprido estampada no rosto servil.

Na ânsia de servir, saíra, no quebrar da barra, para cumprir a ordem, sem ao menos esperar para saber o que iria fazer.

       

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