A VACA DE AUGUSTO RODRIGUES
Liberato Póvoa
31/08/2005
Pinga
era o que não faltava na venda de Calça Boa.
Estabelecido perto do mercado, Calça Boa vendia de tudo: cachaça,
arroz, feijão, rapadura, querosene, farinha baiana. Nascera comerciante. Baixo,
mas não muito, pançudo, e muito, já de cabelos agrisalhando-se, Calça
Boa fazia tudo que era negócio: comprava porco e gado e ele mesmo açougava,
comprava bode, galinha, mantimento, recebia roça na palha para hão
perder conta, e tocava a vida, sacrificosa, mas mansa. Obeso, a camisa não
segurava nos botões, ficando aberta da boca do estômago para baixo, e
nas horas em que não estava jogando gamão e dama com Cantu e Eliseu
Cavalcante na porta da venda, era deitado no balcão cochilando para
arpoar um escasso freguês que ali encostava atrás de uma quarta de fumo
ou burundanguinha à-toa, que Calça Boa vendia mesmo de um tudo.
Um
dia, Calça Boa chega à casa de Augusto Rodrigues, que, sentado numa
espreguiçadeira, mão na boca, entonado no indefectível paletó de brim
escuro, matutava sobre a vida: o gadinho bom da Fazendinha, o serviço do
Correio que ele exercia no lugar de Vivina, que era titular do cargo, os
filhos - Dasse, Quiniana, Nem, Joaquim, Tonho e Lélia - estudando no ginásio,
à exceção do mais velho, Zé, que não tivera natureza nem disposição
de passar da escola de Coquelin e Diana para o ginásio recém-inaugurado.
E Calça Boa vem subtrair o paciente Augusto de seus pensares:
-
Boa tarde, seu Ogusto - disse, subindo os degraus da porta de entrada.
-
Boa tarde, Calça Boa, vamos sentando! - respondeu com sua voz fraca e
preguiçosa fazendo menção de levantar-se, mas Calça Boa foi mais
expedito e sentou-se a seu lado.
Viera
a negócios, o que Augusto estranhou, pois não tinha trato algum com o
comerciante. Antes que
houvesse qualquer conversa, Calça Boa foi direto ao assunto: viera ver se
o outro lhe compraria uma vaca azulega que o filho Zé lhe dera para pagar
uma conta na venda. Augusto
Rodrigues mordeu os lábios e não chiou porque não era de alarde, mas,
contrariado, desembolsou o dinheiro, para deixar a vaca ali mesmo na
Fazendinha. Se não comprasse, Calça Boa era bem capaz de, no outro dia,
estar vendendo carne gorda no açougue, e com justa razão, pois recebera
a vaca como pagamento.
Sorridente,
Calça Boa lambeu a ponta dos dedos e voltou escamando as notas graúdas
que o choroso e contrariado Augusto lhe entregara.
Nem
bem chegou o fim do mês, Calça Boa, sacudindo a pança, atravessa a praçona
e entra na Rua dos Rodrigues, chegando à agência do Correio, grudada na
casa de Augusto:
-
Bom dia, seu Ogusto!
O
velho Augusto separava correspondências no balcão e, ao ser
cumprimentado, olhou por cima dos óculos escanchados na ponta do nariz
para assuntar o que era.
-
Bom dia! Vou ver se tem
carta. Pera aí!
Não,
Calça Boa não viera atrás de carta.
Era a vaca azulega, que, pela segunda vez, entrara na contabilidade
da venda como conta recebida. Augusto
Rodrigues, mais uma vez, fechou a cara; pediu um menos no preço; Calça
Boa ponderou; Augusto reclamou, queimou a priquita e Calça Boa também
queimou de lá ameaçando buscar a vaca e açougar.
Por fim, entraram num acordo: pagou; pagou, mas desautorizou fiar
pinga pra Zé. Se fiasse, o
prejuízo seria de Calça Boa.
Na
primeira vez que Zé apareceu na venda com coisa de bebida pra anotar no
borrador, Calça Boa, mesmo contrariado em perder tão bom freguês, deu o
breque: barrou o crédito. Com
isto, volta Zé ao pai caçando dinheiro.
Dá-não-dou, dá-não-dou, dá-não-dou, e Zé fala em vender a
vaca azulega. O velho sai do
natural e pede respeito? Não dá dinheiro nem deixa torrar a vaca nos
cobres:
-
Vendo!
-
Não vende!
-
Vendo sim! - teimava Zé - Até já tratei com Tintino...
E
para pisar no pescoço da conversa, o velho, numa rara atitude de energia,
decide:
-
Não adianta! Trabalho
perdido cê vender! E quer
saber mais? É você vender e eu tornar a comprar, t'ouvindo, corno?