FALANDO DE
CACHACEIRO
Liberato
Póvoa
Cachaça tem
levado muita gente à miséria, quando não leva à cova.
Tal qualmente o cigarro, pinga é vício muito do trabalhoso de se
abandonar, segundo dizem, pois eu mesmo - graças a Deus! - não sou muito
afeito à bebida, e se tomo copo e meio de cerveja fico bestinha e sujeito a
dormir um dia inteiro.
Gente existe que
troca o sustento pelo copo, vende o derradeiro grão de mantimento para conseguirseguir
pinga, e quando nada mais possui para vender ou trocar, descamba para a
treita, a safadagem e a vigarice, inventando ladinezas pra passar o quinau
nos outros.
Toda cidadezinha
que se preza tem seu cachaceiro notório, cartão postal da boêmia
esmolambada, misto de vagabundo e herói, que fica na memória da gente,
tanto quanto um benfeitor público e povoa nossas recordações com
passagens de tristeza, de alegria, de melancolia, pois um farrapo humano
muitas vezes nos leva a misturar dó com afeição, numa solidariedade
inexplicável. Às vezes, são dois ou mais que a cachaça acaba levando a
simbolizar a boêmia de um lugar.
Lá em Dianópolis
sempre existiu esse tipo, e hoje existem vários, mas por estarem por aí
cuspindo barbante e articulando prosa molenga, é bom mesmo nem falar, pois
não sei se irão receber com bons olhos e ouvidos sua história.
Mas dos que já se foram não peco por contar o que todo mundo sabe.
Um deles era
Antonhão Pé-de-Janta, personagem central de um conto que está publicado
no meu livro “Besta-Fera”. O outro era Domingos Cachaça, que o leitor
conhecerá daqui a pouco e que se constitui no único caso de morte por
atropelamento por um carro-de-boi.
A
imprevisilidade de cachaça leva a atitudes inteiramente diversas: uns dão
para contar vantagens e bancar o rico ou o importante, e uma vez encontrei
um baiano, um senhor de Pedrinho, casado com Tina de Petronília, que andava
correndo as ruas da cidade procurando saber quem tinha catado o dinheiro
dele numa festa de ponta-de-rua; é que, na hora da cachaça, ele deu uma de
bonzão e jogou pra cima um monte de notas graúdas, dizendo que ainda tinha
mais e que aquelas não lhe fariam falta.
Noutros, dá valentia, como Alexandre Gato, que, ao tomar urnas boas
doses, foi à praçona insultar um desconhecido, chamado Paulo Afonso,
igualmente valente, que andava esquipando um cavalão melado pela rua,
sujeito a atropelar o povo; e no meio da praça armou-se a confusão, quando
Alexandre Gato queria porque queria agarrar o chegante, que - dizia o povo -
carregava na cacunda um bando de mortes.
Este, de cima do cavalo, aproveitou a posição privilegiada e deu
uma facãozada com o "Collins" na cabeça de Alexandre Gato, que não
tugiu nem mugiu, caindo ali mesmo, com os miolos latejando no buraco aberto
pelo golpe, para morrer depois. O agressor, perpetrado o crime, ganhou a rua
da igreja, perseguido por Demolício, que, de bicicleta, queria dar parte de
herói, que não parecia passar de frouxo e só saiu atrás do homem porque
sabia que não iria alcançar.
Domingos Cachaça,
que, de tanto beber cachaça, agregou ao nome o da bebida, não era de caçar
briga: era o tipo que se entregava à bebida de corpo e alma, virando a
encarnação da treita.
Domingos Cachaça
assistiu por muito tempo na Lagoinha, fazenda de meu tio Chico de Bené,
terra cheia de pedregulho e morro, muito propícia ao alastramento da
erva-café e erva-de-rato, que envenenam o gado, causando tanto prejuízo,
que os fazendeiros às vezes promovem mutirões para arrancar a praga pela
raiz. Inobstante os prejuízos, a erva era um valioso aliado de Domingos,
para não falar da pobreza: desde que o gado ervado fosse sangrado ainda
quente, sua carne poderia ser aproveitada.
E toda semana, a
região da Lagoinha, do Discreto e os morros do Casco d'Anta era
surpreendida pelo gado morrendo ervado.
Certa época,
Domingos morava no Discreto, onde mais grassava esse terrível arbusto.
E como a mortandade de gado intensificou-se após a chegada de
Domingos, pegaram a desconfiar, pois quando ele estava fora o gado quase não
morria. E desvendaram o mistério:
descobriram que Domingos urinava no pé de erva e tangia o gado, que, atraído
pelo cheiro do sal da urina, acabava comendo.
E isto deixava o legendário cachaceiro na cômoda situação de
desfrutar de um bom naco de carne, que nem sempre era fácil avisar o dono.
Este, por sua vez, lamentava o prejuízo, mas dispensava a carne.
Até morrer
atropelado por um carro-de-boi na porta de meu padrinho Otavinho, no Bairro
dos Nove, Domingos Cachaça marcou presença na história do Duro.