CASTIGO
FORA DE MODA
Liberato
Póvoa
Palmatória,
lambada nas pernas, ajoelhar em caroço de milho, puxavancos de orelha
tudo isto era castigo que se aplicava aqui pelo nosso sertão.
Não
sei se nos lugares mais adiantados era conhecida, mas havia uma punição
muito empregada por aqui que, pouco a pouco, foi desativada.
Chamava-se "tarefa", e seus efeitos eram infalíveis.
Pois, assuntem.
Quando
um menino fazia malcriação, um puxão de orelhas ou meia dúzia de
"bolos" às vezes corrigiam.
Entretanto, quando, por gulodice, egoísmo ou birra, um menino
reclamava que a comida ou a sobremesa era pouca e não dava "nem pra
tapar o buraco do dente", o castigo era específico.
Era
a "tarefa". Consistia
em fazer o pequeno pantagruel ingerir uma quantidade absurda do pitéu
reclamado, sob pena de, não o fazendo, levar uma tunda memorável.
O normal era uma indigestão e a esconjuração daquilo pelo
resto da vida. Nunca mais o
comilão agüentava nem o cheiro do doce ou comida que achara pouco.
Contou-me
alguém que meu irmão mais velho, o Nélio, ao ser-lhe oferecido um pires
de arroz-de-leite, fez cara feia e atiçou-o acolá, emburrado:
-
Só esse tantico? Desse tanto
de arroz-de-leite eu não quero!
Minha
mãe ainda tentou conciliar, mas meu pai, que não deixava escapar nada,
ia passando justo na hora para presenciar a malcriação do primogênito.
E dando-lhe um puxão de orelhas, sentenciou:
-
Tá fazendo-se besta, moleque! Agora,
você vai comer é uma panela inteira, corno!
Na
fazenda Santo Antônio, leite gordo e farto, foi colocada uma panela na
trempe, com bastante leite. Nélio,
esfriando as orelhas e recompondo-se dos pitos, encarapitou-se no fogão,
e daí a pouco estava todo importante antegozando o momento de manducar o
arroz-doce que bufava na panela, e até reprimindo os que espiavam na
cozinha, na espera talvez de rapar o pregado:
-
Sai daí, que é só meu! É meu e não vou dar nem um trisco a ninguém!
E
acompanhou, lambendo os beiços, todo o ritual de preparação do
arroz-de-leite, até que o conteúdo da panela foi distribuído em meia dúzia
de pratos fundos, que foram levados para o banco do alpendre da porta da
rua da fazenda.
Foi
nada não.
O
alpendre ficava ao pé da janela da sala, onde meu pai, sentado numa
espreguiçadeira, pegou um volumoso "Chernoviz" e ficou lendo
sem a mínima pressa, aguardando Nélio cumprir a
"tarefa". De lado, a
taca de sola ensebada. Se não comesse tudo, levaria uma surra de mijar
nas pernas.
Os
pratos, ainda fumegantes e salpicados de canela cheirosa em xadrez,
trouxeram-lhe uma disposição enorme, e ele comeu o primeiro de estalo,
lambendo a colher estanhada e partindo com voracidade para o segundo.
A
sua frente, sentado nas patas traseiras, o cachorro esquelético e faminto
de um dos agregados da fazenda espiava com os olhos pidões,
acompanhando os movimentos de Nélio e contentando-se com um e outro
fanisco de arroz que caía no chão. O
resto do pessoal, lá dentro; meu pai, sentado na espreguiçadeira,
folheava o "Chernoviz", com a taca de lado.
De
início entusiasmado, à altura do terceiro prato o arroz-doce começou a
inchar-lhe na boca, e só conseguia engolir quando imaginava que a
desistência seria traduzida numa surra. A maior inveja que tinha era
daquele cachorro magrelo e morto de fome, que avançava com sofreguidão
sobre os faniscos de arroz que caíam no chão. A vontade era correr,
desaparecer, o diabo! Se
arrependimento matasse, morto já estaria de velho.
Quando
estava no maior drama, chega meu avô materno Bené, e enquanto meu pai o
levou até os fundos e ficou por lá envolvido em conversas, Nélio
aproveitou-se da providencial saída de meu pai e foi até o oitão da
casa despejando o arroz-de-leite para o cachorro, que leve mais disposição
do que ele para enfrentar o restante.
Meu
pai ficou abismado com o apetite de Nélio, que não deixara um grão no
prato. Só muito mais tarde é
que a verdade veio a lume, para gargalhada geral.
Há muito não se tem notícia de "tarefa" por aqui. Não pelo medievalismo de sua aplicação, mas pelo preço em que andam as coisas nestes tempos de vacas magras.