O PESSOAL DO BREJINHO
Liberato Póvoa
09/04/2006
Todo mundo lá do Duro sabe onde é o Brejinho, arredado duas léguas do
comércio. Muito pouca gente sabe, no entanto, que ali está o resto de
três moirões fincados em meados do século XVIII, por ordem de Dom
Marcos de Noronha, para delimitar as terras dos tapuias. Mas todo mundo
sabe onde é o Brejinho.
Lugarzinho ataperado, como tantos outros, onde existem duas ou três
casinhas de enchimento com quintal de mangas salobras e goiabal onde
periquitos e maracanãs tagarelam nos fins de tarde, nada de especial
existe por ali, pois sua própria condição de lugar acidentalmente
histórico está no desconhecimento até mesmo dos moradores. Sem casa de
telha, sem benfeitoria alguma e sem coisa outra que lhe confira
importância, o Brejinho é conhecido pelo povinho que ali mora, o qual,
de certo modo, caracteriza o matuto ali daquelas beiradas.
Creio que os três eram a família inteira: Zé Bueiro, Lino Cabeça-Gorda e
Eleutério, todos irmãos. Zé Bueiro era o mais velho; Lino, o mais
sabido, creio que o único eleitor dos três; Eleutério, o mais simpático
e sempre cheio de queixumes.
Sobrenome, sei que tinham (quem não tem?), mas desconheço. Zé Bueiro,
baixinho, barbicha rala, voz grave e limpa, sempre caminhando passos
miúdos nas ruas do Duro, calçado na salga-bunda, chapéu de couro
ensebado pelo uso e espurucado de polia, quase arrastando no chão o
facão exagerado, respondia com um palavrão impublicável àqueles que
ousavam chamá-lo de "Zé Bueiro".
- Ancê sabe quem é "Zé Buero"? É sua mãe, seu fio duma salta-moita!
E para qualificar com mais propriedade a genitora do desaforado, Zé
Bueiro improvisava expressões adjetivas muito peculiares: "fio duma fuça-e-ronca" (porca), "fio duma mija-pra-trás" (égua), e por aí afora.
Lino, que pulava dentro da roupa quando o chamam pelo apelido devido ao
seu grande volume craniano, vivia quase sempre na rua, arranchado na
casa de Clide Valente, de quem era agregado e eleitor, e bebendo sua
cachaça na venda de Joaquininha. Atencioso, reverente, Lino jamais
deixava de cumprimentar os passantes conhecidos e de pedir a bênção
aos mais velhos, a quem tratava de "meu tio", "minha tia", sem se falar
nos "meu padrim" e "minha madrinha" arranjados nas festas de São João,
de acordo com o costume para se tornar padrinho, madrinha, afilhado e
afilhada, no saltar da fogueira.
Mas Eleutério, pelo jeito brejeiro, pela maneira de conversar, pela
indolência e falta de senso crítico, era uma figura impagável:
inobstante analfabeto, arribava com a família inteira para a rua e
arranchava lá em casa três dias antes das eleições do dia 3 de outubro,
para comer e beber de graça e zanzar pelas ruas no sem-que-fazer.
- Como vai, Eleutérío?
- Eu aqui pelejano, fazeno das fraqueza força...
- E a família?
- Ela lá quexosa: a muié, cum doencêro... os minino, cheio de lumbriga...
Nunca vi Eleutério sem que estivesse fraco, precisado, com a família
perrengue, com filhos briquitando de fraqueza.
Sempre que vinha cá na rua, trazia Canuto, o filho que lhe era os
dengos: beirando seus vinte anos, tez desbotada tirando a amarela, cara
de mamão macho, fala mansa, dentes corroídos, gestos maneiros, metido a
falante e prosódico. Ao contrário do pai, que se limitava a dizer "apois
é, né?", "é verdade!", "inhá sim" e "inhô sim", Canuto era até cheio de
modas, puxando prosa e comentando assuntos:
- Tô virando inleitô. Já suletro num bando de nome...
- Gostei de ver, Canuto! Quer dizer que nas eleições já temos o seu
voto, né?
Canuto chupava os dentes podres e arrastava sua voz, mostrando que não
era nada besta:
- Mode votá, vô pricisá duma muda de roupa nova e um par de butina nova,
meu tio! - dizia, insinuando que seu voto valia sua precisão no vestir e
no calçar.
Aprendendo a ler, chega Canuto à "Loja Póvoa", queixando-se de dor nas
vistas:
- As letra baraia, meu tio! – explicou a meu pai, que lhe aconselhou um
par de óculos.
A falta de oculista era suprida pelos óculos que já vinham com um
selinho indicando na própria lente a graduação, e o freguês ia
experimentando até que encontrasse um de acordo.
Meu pai pegou a caixa de óculos e um jornal "A Marcha", que, como
integralista, assinava, e mostrou-o a Canuto, para testar os óculos.
Depois de experimentar todo o estoque e dizer que nenhum servia, meu
pai observou, já meio irritado com aquela paciência de Canuto:
- Assim também não é possível, Canuto! Toda vez que você bota os óculos
você fecha os olhos...
Ao que Canuto respondeu sem pestanejar:
- Uai, meu tio, de zói aberto eu inxergo sem ocro...