O APERTO É O PAI DA INVENÇÃO

 

Liberato Póvoa

 

Todo mundo já foi menino, e todo menino é cheio de inventiva, ora para ser notado, ora para se livrar de momentâneo embaraço.

Meu irmão Nélio, certa vez (e já contei aqui), livrou-se de um incômodo cas­tigo (comer, a muque, seis pratos fundos de arroz-de-leite) apelando para um ca­chorro magrelo que lhe espiava os coagidos movimentos da colher no prato.  Por ter recla­mado do tiquinho de arroz doce que lhe fora dado, foi intimado por meu pai a comer um aribê da mesma iguaria até enjoar, "pra aprender a não ser sameado".'

Aproveitando-se de que meu avô Bené chegara e que meu pai frouxara a vigi­lância ele empur­rou o arroz-de-leite no faminto cachorro, e demorou muito tempo para meu pai compreender como ele conseguira comer tudo sem repunar.  E foi o próprio Nélio - que, quando menino, não era gente - quem aprontou outra.

Ora se deu que um dia meu pai botou na cabeça de aventurar um ourozinho a légua e meia da rua, num lugar por nome Lavrinha, resquício de uma lavra de ouro de aluvião abandonada após a extinção do cativeiro.

Não que meu pai fosse garimpeiro, mas comerciante; entretanto, existe em todo comerciante uma ambiçãozinha de inteirar seus lucros com qualquer extra, para com­pensar os fregueses velhacos que não pagam conta antiga e deixam as no­vas de­cre­tado a amarelarem no borrador e no conta-cor­rente, já na treita de dar o quinau.

Pois bem, num domingo - ou sábado, nem sei -, ele pegou Nélio de compa­nheiro, alceou a bateia, botou na cabeça um chapéu de palha trabalhado que lhe dera um velho xerente, e comeu es­trada, a pé, com o filho atrás.

Na capanga de mescla, onde carregava a tralha de pitador e a cornija de car­re­gar simonte, le­vou também uma xícara de esmalte para beber o café do quente-frio e trazer os faniscos de ouro que a esperança lhe soprara nos ouvidos como cer­tos no achado.

A demanhã inteira labutou girando a bateia, e quando o sol meiou o céu, jun­tou o ouro arre­cadado, ainda misturado no saibro pegajoso do fundo do córrego, botou na xícara, emborcou a bateia na cabeça, mercê do sol do meio-dia que fritava o juízo, entregou a vasilha a Nélio, e ganhou a es­trada de volta.

Meu pai, na frente, e Nélio, atrás; ele, com a ferramenta no ombro, a capanga a tiracolo e o chapéu debaixo do braço; Nélio, só com a xícara esmaltada enfiada no dedo pela asa, única incum­bência que lhe fora dada na volta.

De início, o menino ia levando com cuidado a xícara, embora o barro tivesse endurecido e aderido à vasilha, transformando-se num beiju, de sorte que ficava até difícil perder o conteúdo.  Mas - olha um passarinho aqui, repara um animal acolá - Nélio acabou se distraindo" e quando deu fé, estava displicentemente rodando a xí­cara no dedo.  E o pior tinha acontecido: o ouro tinha se per­dido.

Nélio nem queria imaginar o que o esperava, sabendo que um esbregue de meu pai doía mais que uma surra.  A sua valência era que meu pai ia adiante, a uns dez passos, seguramente fazendo planos para o ouro bamburrado.  Como explicar?  Meu pai jamais iria perdoar tamanha negligência, pois Nélio fora incumbido única e ex­clu­sivamente daquilo.

Mas o aperto é que é o pai da invenção.  E Nélio logo imaginou um meio de safar-se.  A me­dida que iam se aproximando da rua, ele ia ficando mais apertado e ca­çando saída.  Desculpas não havia.

Mas cabeça de menino é coisa muito bem encomendada pra fazer coisa er­rada, e como meu pai ia lá adiante, alheio a tudo, Nélio marcou uma touceira de catolé na beira do trilho e correu no rumo, caindo desajeitadamente, por cima do capinzal que espremia à estradinha, com o cuidado de fazê-lo espalhafatosamente para atiçar a xí­cara lá longe e principalmente chamar a atenção de meu pai.  Dito e feito.

- Que foi, menino? - voltou meu pai preocupado.

- Caí. .. - ensaiou ele, espiando assustado a reação do velho.

       - Caiu, como?

- Vinha caminhando, tropiquei e - pá! - caí...

Os olhos de meu pai cataram as mãos vazias de Nélio, atrás da preciosa xí­cara:

- Cadê o ouro?

- Derramou...

Foi a salvação de Nélio, embora meu pai ainda tivesse escarafunchado por ali, na esperança de reaver o que pudesse, logo desistindo com um "Ah" de raiva.

É isto.  Menino tem uma capacidade inventiva espantosa.  Mas na maioria das vezes só para encobrir o que erra.  E não é?

       

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