AMNÉSIA CARNAVALESCA
Dídimo Helono Póvoa Aires*
24/03/2004
Carnaval e bebida alcóolica, como se sabe, caminham juntos. E é de se esperar que histórias pitorescas surjam durante a folia, principalmente aquelas que envolvem ébrios. Contou-me um amigo que seu irmão, no primeiro dia da festa aqui em Palmas, emocionou-se mais do que o previsto e exagerou na dose de vódica. E a tal bebida russa não perdoa, e só alguém, que dela já tomou um porre, sabe as conseqüências. Um dos principais sintomas é a amnésia, protagonista de vexames épicos.
Embriagado, o rapaz abandonou a festa e se dirigiu até o local onde estava o seu veículo. Conseguiu dar partida e saiu em alta velocidade. Passando por um “pit dog”, resolveu parar e fazer um lanche. Esse foi o seu erro. Durante a ingestão do gorduroso sanduíche, iniciou-se uma horripilante química no seu estômago, numa mistura de ovo frito, hambúrguer, tomate, maionese e vódica. Daí à amnésia, foi um pulo.
Tomado por agudíssimo mal-estar, resolveu que deveria buscar o seu veículo. Dirigiu-se novamente ao local onde já havia estado e espantou-se quando descobriu que o carro não estava lá. Desesperado, procurou um policial e relatou o ocorrido. O militar disse-lhe que, momentos antes, um sujeito maluco tinha saído em disparada, pela contramão. Todo o aparato policial foi acionado e informado sobre o “furto” de um veículo branco, placa número tal, assim, assado.
Devido ao estado etílico da “vítima”, a polícia levou-a até sua residência. O rapaz acordou toda a família e, em prantos, contou sobre a tragédia e o seu desconsolo aumentou quando lembrou-se de que sua carteira e o celular haviam ficado dentro do carro. Os soluços chegaram às raias do descontrole no momento em que se lembrou das muitas prestações que ainda deveriam ser pagas. Foi preciso tomar um copo d’água com açúcar quando sua combalida memória o informou de que não havia feito seguro. Seu semblante estampava tristeza e, nessa altura dos acontecimentos, a vódica malvada tinha se esvaído através das flatulências nervosas que expeliu durante a madrugada fatídica.
Passado algum tempo, teve a boa idéia de sair pela cidade, na esperança de avistar o seu amado carrinho, pois, segundo raciocinou, “o meliante não devia estar longe”. De fato, ao passar pelo citado “pit dog”, viu um carro “parecido” com o seu. Aproximou-se devagar, com todo o cuidado possível e, radiante de alegria, percebeu que se tratava mesmo de seu veículo. Mas era preciso ser cauteloso, pois o delinqüente devia estar na redondeza. Chamou o proprietário do estabelecimento e sussurrou no seu ouvido: “- Tá vendo aquele carro ali?” – e apontou para o estacionamento. “- É meu. E foi roubado. Cuidado, pois o cara está aqui”. O sujeito lhe disse que, realmente, um homem muito bêbado chegou naquele carro, comeu, bebeu, não pagou e sumiu.
Entrou no carro e alegrou-se quando percebeu que seu celular e sua carteira estavam intactos no porta-luvas. Foi para casa, dormiu feliz e acordou sorridente, sentindo-se um homem de sorte. Com o passar do tempo, associou os acontecimentos do dia anterior e, a cada momento, percebia que tudo se encaixava, como um quebra-cabeças. Os vincos de sua testa ficaram mais profundos quando percebeu que o tal meliante era ele mesmo. Havia sido vítima de si próprio. Vódica é assim: queima instantaneamente os neurônios, causando essas amnésias horríveis e constrangedoras. A única vantagem é que o sujeito, depois de uma dessas, diminui sensivelmente o consumo de álcool.
*Dídimo
Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.