ATEU, GRAÇAS A DEUS

 

Dídimo Heleno Póvoa Aires*

15/04/2004

“O Retrato de Dorian Gray” foi o único romance que o irlandês Oscar Wilde escreveu. E não precisava de outro, já que se trata de uma obra-prima, reconhecido como um dos grandes clássicos da literatura universal. A estória gira em torno de Dorian, um sujeito bonito e vaidoso, que se vê beneficiado pela eterna juventude, quando o seu amigo Basil pinta-lhe um quadro. Estranhamente, é o seu retrato pintado que envelhece.

 

Dorian, a partir disso, torna-se extremamente mesquinho, sórdido, um verdadeiro crápula. Todos os seus amigos envelhecem, enquanto ele mantém sua eterna juventude. Com a certeza da imortalidade, não tinha motivos para ser honesto. E é justamente aí que entra a questão que pretendo discutir neste artigo: a importância da morte na condução de uma vida íntegra.

 

Tirando os criminosos crônicos, que são irrecuperáveis e não se intimidam com leis ou prisões, o ser humano mediano teme o sistema penal de seu país e normalmente segue alguma religião, que, juntamente com o Direito, funciona como ótimo meio de  controle social.

 

Deus, em sua infinita sapiência, tratou de não permitir que o homem vivesse para sempre aqui embaixo. A morte funciona como medida de contenção de abusos e exageros de toda espécie. Os cristãos, que acreditam na vida eterna, sabem que, para viver, é preciso antes morrer. E ninguém em sã consciência, por mais ávido que esteja para se encontrar cara-a-cara com o Criador,  sente a mínima vontade de passar desta para a melhor, mesmo acreditando na eternidade da alma. Assim,  morrer é algo contra o qual não existe remédio, como vaticina o adágio popular. Todos imaginamos, mas não temos certeza do que nos espera do outro lado, até porque, com exceção de alguns espíritos mais afoitos que costumam dar o seu recado em centros específicos, pouca coisa se sabe do além. Na verdade, nunca ouvi dizer que alguma alma penada tenha explicado, detalhadamente, como a coisa funciona do lado de lá.

 

E essa incerteza faz o homem ser menos horrível do que é. Imagine se fôssemos beneficiados pela eterna juventude como o Dorian de Oscar Wilde. Certamente não seríamos melhores do que ele. O ser humano está na fronteira entre a sordidez e a ganância, e qualquer motivo que possa lhe servir de pretexto para praticar o mal é suficiente a justificar suas atitudes indignas. É  aí que entra a morte, com sua importância fundamental para o destino da humanidade. Muitas pessoas passam a vida tratando de garantir seu espaço no céu, e rezam muito para que não tenham surpresas desagradáveis lá em cima. Outros, embora duvidosos da existência de Deus, não ousam afirmar abertamente que Ele não existe, e num arroubo de incoerência desmedida, têm medo de ser castigado por esse mesmo Ser Divino.

 

Quanto a mim, estou certo de que Deus existe. Isso é óbvio ululante, basta olhar a nossa volta. E a morte, essa carniceira ingrata que a ninguém poupa, fica a nos espreitar, com um olhar de soslaio, como se estivesse a nos dizer: “você tem o livre arbítrio, faça o que achar melhor, mas saiba que vai morrer. Depois disso, as contas serão acertadas”.

 

Deus, é preciso reconhecer, foi muitíssimo inteligente quando inventou esse negócio de morte. Sem ela, seríamos todos Dorian Gray, pois é o medo do que vem depois que nos faz ser bonzinhos aqui na Terra. Os que, por convicção, não acreditam na existência Divina, se apegam às questões de ordem material. São pessoas corajosas e a sorte delas é que o Criador é misericordioso, sempre propenso a perdoar. Mas eu, por via das dúvidas, não ouso desafiar assim a ira Dele, até porque o meu Deus é aquele do Antigo Testamento, que não se faz de rogado e pune os filhos desobedientes.

 

 Há um tempo atrás, tive a oportunidade de conhecer o Sr. José Ernesto Ballstaedt, um sujeito simpático e bonachão. Numa conversa que travávamos, ele manifestou sua incredulidade na existência Divina. Fiquei estupefato ante a veemência com que ele defendia seu ponto de vista. Ao final de nossa conversa, fiz a inevitável pergunta: “o senhor é ateu?”. No que ele respondeu: “sou, graças a Deus”. “Seu” Ernesto, que não é bobo nem nada, é o único ateu que conheço que acredita em Deus. Neste mundo de incertezas, é bem mais seguro garantir um lugar no Paraíso.

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.  

 

       

Sair