LEMBRANÇAS DO INSTITUTO

 

Dídimo Helono Póvoa Aires*

09/03/2004

 

O Instituto de Menores, que fizeram o desfavor de modificar o nome para São José, em Dianópolis, fundado por Hagahús Araújo e Silva, homem a quem devemos muitos agradecimentos, foi o palco da minha infância. Por lá cometi tudo o que era permitido a uma criança levada. Aliás, confesso que cometi também tudo o que não era permitido.

 

O mês de julho era aguardado com ansiedade. Naquela época meus padrinhos Wilson e Celeste assumiam a paternidade de 110 alunos. Em julho, passavam a cuidar de 111, quando eu lá chegava para sonhados trinta dias de férias. Fazia questão de instalar-me nos dormitórios juntamente com os alunos e minhas refeições eram feitas com eles no grande refeitório, local onde também cumpri algumas penas, como punição pelas minhas peripécias.

 

Tio Wilson não se fazia de rogado e, até mesmo para demonstrar autoridade e justiça, puniu-me certa vez com o mesmo rigor com que puniria um aluno qualquer. Mas eu mereci.

 

Para zelar pela ordem e segurança dos alunos, alguns “Chefes de Disciplina”, que chamávamos de “chefe-disciplina”, faziam um rodízio durante as semanas. Na minha época, revezavam Carlos Aquino, Valdino e Horácio. “Seu” Horácio era maleável, bom coração, fácil de convencer e enganar. Por isso mesmo, as aventuras mais ousadas eram cometidas durante o seu plantão.

 

 Por ser afilhado do Diretor, eu funcionava como uma espécie de porta-voz dos alunos, sempre intercedendo em seu favor, ora requisitando a quadra de esportes para jogarmos à noite, com o conforto dos refletores, ora conseguindo autorização para uma pesca nos arredores do Internato.

 

Durante o período de férias, apenas os alunos novatos ficavam no Instituto, em torno de cinqüenta ou sessenta. Foi num belo dia de julho que cometi um dos mais ousados planos de minha infância. Aproveitando o plantão de “Seu” Horácio e atendendo a antiga reivindicação dos alunos, pedi ao tio Wilson que os liberassem para colherem algumas frutas no pomar, que estava abarrotado de laranjas, tangerinas, mangas, limões, melancias e bananas.

 

Com muito jeito, depois de algum tempo rodeando as barras da calça do meu tio-Diretor, finalmente criei coragem e fiz o difícil pedido. Um não do tamanho de minha ousadia foi o que recebi como resposta. Inconformado, fiquei ali num canto, triste, pensativo, colocando os neurônios maquiavélicos para funcionar. Algumas sinapses depois, já havia bolado o plano fatídico.

 

No dia seguinte, tio Wilson foi até a cidade, como era de seu costume. Aproveitando sua ausência, dirigi-me até o “chefe-disciplina” e travei o seguinte diálogo:

 

-         Então tá tudo certo não é, “seu” Horácio?

-         Certo o quê, menino?

-         Ué, tio Wilson não lhe falou?

-         Falou o quê?

-         Uai, sobre o pomar!

-         Sobre o pomar o quê, Didimeleno?

-         É que eu pedi e ele deixou.

-         Deixou o quê?

-         Os meninos colherem frutas.

-         Olha, duvido muito.

-         Deixou sim, “seu” Horácio. Ele deve ter esquecido de lhe falar. 

-         É, mas ele não me disse nada.

-         Porque esqueceu, né!

-         Tudo bem, tudo bem. Vou liberar a turma!

 

Cinqüenta e tantos meninos famintos correram em direção ao pomar. As galhas das plantas quebravam de tanto peso. Como macacos, devoramos tudo o que estava ao nosso alcance. Sacos e mais sacos foram enchidos e levados para o dormitório e colocados em caixotes, uma espécie de armário onde os alunos guardavam seus pertences. A bagaceira de laranjas e tangerinas sob as árvores denunciavam a destruição. Um desavisado poderia imaginar que se tratava de um ataque de caititus.

 

No dia seguinte, tio Wilson retornou da cidade. De longe, era possível sentir o cheiro forte do sumo da  laranja. Alunos barrigudos e felizes, risonhos além do normal, despertaram suspeitas no Diretor. Quando viu o amontoado de cascas de banana e talhadas de melancia espalhadas pelos lixos do lugar, suas desconfianças trouxeram, junto com a saliva, um gosto amargo de fel à boca. Aquele gostinho que precede as raivas geradas pela traição. Já não havia dúvida: Didimeleno estava por trás daquilo tudo.

 

- Horácio! Horácio! – o grito surdo de cólera atravessou os corredores do Instituto. Era o meu tio chamando pelo “chefe-disciplina”. Ao ouvir aqueles gritos, uma friagem atravessou toda minha espinha, fazendo-me estremecer ligeiramente, antecipando os rigores da sentença que estavam por vir.

 

- Pois não, doutor. – respondeu um Horácio trêmulo. – Que baderna é essa aqui? – emendou meu tio, quase cego de raiva. – Uai, doutor, eu liberei os alunos pro  pomar, pois o  Didimeleno me disse que o senhor tinha autorizado ... 

 

Pronto. O nome do réu havia sido pronunciado. O autor do crime era conhecido, o meliante haveria de ser punido exemplarmente. Qual um general, tio Wilson saiu à minha procura, ladeado pelo enganado e humilhado Horácio. Avistou-me cabisbaixo, pronto para receber o tiro de misericórdia. Agarrou-me fortemente pelo braço, deu-me alguns sacolejos, acompanhados das inesquecíveis e doces expressões: insubordinado, irrecuperável, mal criado, torto, animal do chouto duro, sem confiança, vergonha da família, mau exemplo, traidor, moleque e, finalmente, vagabundo.      

 

Passei cerca de 4 horas em pé num canto da parede do refeitório, após ter feito uma faxina geral em todo o prédio, inclusive passando o rastelo para recolher as folhas caídas debaixo de dois pés de mirindiba, no pátio do Instituto. Mas valeu a pena. Durante as horas de castigo, recebi várias manifestações de apoio da garotada. Uns passavam por mim e, em voz baixa, sussurravam: “Valeu, cara! Você foi fera!”. Daquele dia em diante, ao tempo em que era visto como um herói corajoso e destemido pelos alunos do internato, era constantemente vigiado pelos “chefes-disciplinas”, que a partir dali tinham recomendações expressas de vigiarem de perto as atitudes do mais novo marginalzinho da turma. Como naquele tempo ainda não existia o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), os castigos podiam ser aplicados com mais rigor. E quer saber de uma coisa? Tanto melhor que fosse assim, pois aprendíamos a lição e nem por isso tomávamos raiva dos nossos pais ou tios, muito pelo contrário, o nosso amor por eles crescia com mais respeito e solidez. Hoje, qualquer atitude mais rígida, é motivo para que pais e responsáveis sejam constrangidos perante à Justiça. E muitos de nossos adolescentes tornam-se malandros mimados, merecedores de uma boa surra.   

 

Os anos se passaram e eu continuei por muito tempo  vivendo minhas férias no Instituo de Menores, sob os cuidados dos tios  Wilson e Celeste, meus segundos pais. Foram tempos inesquecíveis. De vez em quando sinto uma brisa que vem lá das galhas dos imensos pés de eucalipto que ladeavam a quadra de esportes do Instituto e traz junto consigo o cheirinho do sumo da tangerina. É o cheiro de minha infância, porque todas as boas lembranças têm odor!

 

 

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.

 

     

       

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