TRISTE CENA URBANA
Dídimo Heleno Póvoa Aires
29/06/2004
Dia desses, ao sair do shopping aqui de Palmas, avistei uma senhora de mais ou menos quarenta e cinco anos, andando sob um sol de quarenta graus. De repente, a mulher caiu e começou a tremer e a babar. Corri para socorrê-la, outras pessoas se juntaram a mim e percebemos que estávamos diante de uma crise epiléptica. Minha esposa ligou para o corpo de bombeiros e, como resposta, ouviu um mal-educado dizer que o problema era dela, que isso era um dever social de todo cidadão, como se ela já não estivesse fazendo justamente isso. Outra mulher que se juntou a nós ligou para um hospital e prometeram mandar uma ambulância. Nesse meio tempo, a mulher foi se restabelecendo. Constrangida, ante os olhares curiosos de estranhos, explicou que estava vindo da Secretaria de Saúde, onde havia ido buscar o seu remédio, mas lhe disseram que tinha acabado. O tal remédio custa dezoito reais. Fizemos uma “vaquinha”, arrecadamos o dinheiro necessário, a ambulância chegou e a senhora foi-se embora.
Depois disso, por umas três vezes, encontrei a mesma mulher caída nas calçadas de Palmas, com pessoas ao seu redor. Na porta do mesmo shopping, deparei-me com ela mais uma vez esticada, e uma pessoa, que estava ao lado, comentava que aquilo era normal, que aquela senhora sempre cai pelas ruas. A triste cena se tornou corriqueira, banal. A epiléptica já se tornou popular, quase todo mundo a conhece. Volta e meia, tropeçamos nela pelo caminho, caída e babando, com os olhos revirados. Ninguém se importa.
O pior de tudo isso é que nenhuma autoridade toma providência, nem sequer demonstra conhecer o fato. Ou, se conhece, nada faz. A pobre mulher vai caindo pelas tabelas, socorrida pela solidariedade popular, levanta-se constrangida, vai à Secretaria de Saúde, às vezes nem encontra seu remédio, cai de novo, levanta, sacode a poeira, não dá a volta por cima e cai novamente. Cada queda sua representa a falência do sistema, o descaso que se tem com o pobre, com o cidadão humilde em nosso País. Não é difícil imaginar que o seu destino será o atropelamento ou a pancada fatal com a cabeça em algum paralelepípedo da vida. Enquanto isso, ela vai vivendo, aos trancos e barrancos – literalmente. Nós, os palmenses, já estamos nos tornando íntimos dela. Sua baba bovina, grossa, pastosa, caindo pelos cantos da boca, reflete bem a nossa impotência diante de situações aparentemente banais.
Essa mulher precisa de ajuda.
Como o bombeiro mal-educado, alguém vai me
dizer que é dever do cidadão tentar fazer alguma coisa. Tudo bem,
mas grande parte do cidadão
comum já carrega sua própria cruz, com a dificuldade de se viver com um
salário de duzentos e sessenta reais, com a pobreza crônica que assola o
Brasil. As autoridades responsáveis pela saúde pública precisam fazer
algo. A cena dessa mulher caída contrasta profundamente com as avenidas e
jardins floridos de Palmas. Seus olhos revirados e brancos pedem socorro a
cada desmaio, a cada crise. E nada se faz.
Pelo retrovisor do carro, avistei-a outro dia caída sobre um desses canteiros gramados, bem aqui perto do Palácio, mais uma vez rodeada de populares, mais uma vez babando, mais uma vez sofrendo, mais uma vez socorrida. Essa mulher está morrendo às nossas vistas e nós, impassíveis, assistimos agoniados e fartos de tanto descaso. Um dia desses ela bate a cabeça, morre e vai como indigente para o IML. Nós vamos para casa, para o conforto de nossos lares, aliviados por não mais nos depararmos com aquela mulher revirando os olhos em nossa cara; dormiremos impunemente e não se fala mais nisso.
Nem sei o nome dessa pobre senhora. Mesmo se soubesse, não divulgaria aqui neste artigo de jornal, pois basta o constrangimento que ela é obrigada a sofrer a cada queda. Ela é bem conhecida, popular, é a “mulher epiléptica”, aquela que cai todo dia. Se alguma autoridade se interessar pelo caso, mesmo que seja para conseguir um votinho nas eleições de outubro, basta ficar ali pelas imediações do shopping, próximo à Secretaria de Saúde, pois é naquele trecho que ela costuma desabar. Se qualquer candidato a vereador ou a prefeito fizer essa caridade, prometo que dou-lhe meu voto. O máximo que posso fazer, como cidadão, é escrever este artigo, visto que não tenho condições de levá-la para minha casa. Se nada disso resolver, vou pedir a ela para começar a dar suas crises de epilepsia na porta dos órgãos públicos. Talvez uma autoridade escorregue na sua baba e resolva fazer alguma coisa.
*Dídimo
Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.