A HIPOCRISIA NOSSA DE CADA DIA
Dídimo Heleno Póvoa Aires
24/08/2004
Em
conversa travada com alguns amigos, surgiu
este assunto polêmico: a hipocrisia é, ou não, necessária para se
viver em sociedade? O leitor pode achar, à primeira vista, meio absurdo
esse questionamento. Mas, se pararmos para analisar nossas próprias
atitudes do dia-a-dia, veremos com espanto que, em certas ocasiões, somos
mesmo hipócritas.
O
filósofo Francis Bacon ensinava que a franqueza é uma grande virtude.
Entretanto, muita franqueza é burrice. De fato, o sujeito que só diz a
verdade se torna um chato, um inconveniente.
Não que a verdade deva ser escondida, mas que seja dita com discrição
e em momentos oportunos, evitando-se constrangimentos.
Nossas
pequenas hipocrisias de cada dia estão presentes nas mais simples
atitudes. Quantas vezes encontramos alguém que conhecemos e,
apesar de não termos intimidade, tratamos como se fosse uma pessoa
da família? São trocas de gentilezas exageradas, palavras de afeto, abraços
calorosos, sorrisos forçados e – no
ápice do fingimento – despedidas
emocionadas.
Hipocrisia,
etimologicamente, significa o vício que consiste em aparentar uma
virtude, um sentimento que não se tem. Em outras palavras, é fingimento,
falsidade. Claro que, em doses cavalares, torna a convivência insuportável.
Trocas
de números de telefone se tornaram comuns e é aceita como uma atitude
quase essencial após um encontro, por mais efêmero que ele seja.
Geralmente, esquece-se o papel com essas anotações em algum bolso de
camisa ou calça, que se perde em meio ao sabão em pó dos tanques ou máquinas
de lavar roupa. Mais triste é quando o sujeito não tem telefone e você
se dispõe a anotar o endereço, com CEP e tudo, prometendo-lhe uma
visita. O mais incrível é que, em muitos casos, os envolvidos estão
plenamente conscientes de que tudo não passa de encenação.
Muitas
vezes encontramos aquela pessoa que há tempo não víamos e que, embora não estivesse fazendo a menor falta, a recebemos de braços
abertos, exalando hipocrisia pelas axilas. A coisa fica insuportável
quando surge o tradicional convite para um jantar, daqueles que se faz
“por educação”. E o pior acontece: o convidado acredita e aparece na
sua casa, sem aviso prévio, com os filhos, a esposa e a empregada. É um
corre-corre frenético, é água no feijão, é pão com margarina para
agradar a meninada, é tira-gosto de azeitona e um deus-nos-acuda que
somente é aliviado com a demorada partida dos visitantes.
Aliás,
visitas inconvenientes proporcionam momentos inusitados. É comum
visitantes encontrarem os visitados em situações constrangedoras, como
uma discussão conjugal, onde se falam verdades cruéis, ou, ao contrário,
em pleno ato de amor. No primeiro caso, costuma-se colocar o visitante em
dificuldade, envolvendo-o na discussão. No segundo, ejacula-se de susto,
após o toque da campainha.
Tenho
um amigo que me fez uma confissão: corre léguas quando avista
algum conhecido, apenas para não ser forçado a cumprimentá-lo.
Mas, se não há como fugir, derrete-se todo em paparicos, com a cara mais
lavada do mundo.
Dificilmente
encontramos alguém que admite ser hipócrita, o que não deixa de ser
pura hipocrisia. Mas são absolutamente perdoáveis essas atitudes, até
mesmo para se conviver em sociedade, afinal somos seres sociais e
precisamos viver em grupo. Desde que o mundo é mundo que se escuta
pessoas elogiando a “beleza” de recém-nascidos, assemelhando-a com a
do pai, numa clara intenção de dizer: calma, o filho é mesmo teu. E não
é de hoje que as noivas são sempre lindas aos olhos de quem as elogia.
Seria um caos se falássemos somente a verdade. Certamente aumentaria o número
de deprimidos. É preciso encarar essas pequenas mentiras e falsidades do
dia-a-dia com muito bom
humor, até por que o sorriso é a principal arma do hipócrita.
*Dídimo
Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.