O
MARKETING DA BLASFÊMIA
Dídimo
Heleno Póvoa Aires*
13/11/2004
Há poucos dias, terminei de ler “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro escritor da nossa língua a ser agraciado com tal honraria. Como literatura, uma maravilha. Mas, depois de lê-lo, descobre-se porque a Igreja repudiou, de forma veemente, esse livro.
Os fervorosos católicos devem lê-lo com reservas, ou – o que é mais fácil de se imaginar – provavelmente nunca o lerão. O que é uma pena, do ponto de vista literário. Trata-se de uma ficção, tirada da cabeça genial de Saramago, onde Cristo é descrito como um homem comum, com desejos e pecados e a virgem Maria, que na verdade, para o autor, não é virgem, teve nove filhos, sendo sete homens e duas mulheres.
Na sua estória, José (o pai) também é crucificado e Jesus o responsabiliza pela morte das crianças que o Rei Herodes mandou exterminar. No ponto alto da blasfêmia, Saramago endoidece o leitor fervoroso, quando descreve um diálogo entre Deus, Cristo e o Diabo. Se olhado puramente como ficção (e é assim que deve ser lido), o livro é repleto de um humor, digamos, negro, mas nem por isso menos bem elaborado, já que se trata de um escritor de reconhecido talento.
Leio essas coisas porque acredito que só podemos contestar aquilo que conhecemos. A própria Igreja, através dos seus Representantes, leu o livro, caso contrário não o teria repudiado. Também li a Bíblia, mas, em que pese a sua maior importância, não há dúvida de que o livro de Saramago, embora recheado de heresia, seja bem mais divertido.
Para
um escritor, não deve existir melhor marketing do que o seu livro ser
repudiado pela Igreja. Quem não gosta do que é proibido? Afinal, somos
todos pecadores porque o pecado é irresistível. Infelizmente, nem tudo
que é bom para a carne o é para o espírito. Vejam o resultado: José
Saramago ganhou o prêmio Nobel de Literatura e o seu livro está
batendo recordes de venda em todo o mundo. Outro livro, prestes a se
tornar best seller, será “Dogma”, já devidamente propagado pelos
cristãos.
Igual
exemplo é o livro “Os Versos Satânicos”, do anglo-indiano Salman
Rushdie, que teve sua sentença de morte decretada pelo Aiatolá Komeini
por ter criticado o Islamismo. Hoje vive escondido, com medo de morrer,
mas podre de rico, graças a esse poderosíssimo marketing feito pelos
fundamentalistas do islã. Como literatura, achei o seu livro apenas
razoável, bem longe de um Saramago. Provavelmente não teria sido um
sucesso de venda e seria um escritor obscuro, não fosse o fanatismo de
seus marqueteiros, que fizeram o favor de divulgar sua obra.
Ficaria
bem melhor se a Igreja, ao invés de repudiar esse tipo de livro – e
com isso fazendo marketing por via indireta – discutisse o seu conteúdo
nas reuniões com os fiéis, pois quando se acaba de ler coisas desse
tipo, o resultado é dobrar a fé de quem já a possui, com a vantagem,
ainda, de absorver todo o conteúdo literário e intelectual disponível
no texto. Fé é subjetivo e, por isso mesmo, não serão os Saramagos
da vida que contribuirão para o aumento de ateus no mundo.
Na
Idade Média, a Igreja distribuía aos padres uma lista de livros
considerados inconvenientes para os fiéis. Esta lista era conhecida com
Índex e, antes da missa, todos ficavam sabendo o que era proibido ler.
Naturalmente, as pessoas saíam dos templos ávidas para cometerem o
pecado de “devorar” tudo o que não fosse permitido. E a hipocrisia
corria solta, pois, embora pecadores, ninguém queria correr o risco de
ser queimado vivo. A Idade Média passou e a Igreja não evoluiu.
Tinha
que ser polêmico um livro de língua portuguesa, para conquistar o Prêmio
Nobel. E também tinha que ser português de Portugal, pois o Brasil não
está localizado na Europa. Cá entre nós, um Machado de Assis, um João
Cabral de Melo Neto e até mesmo Jorge Amado mereceriam ter ganho esse
Prêmio. Mas, são brasileiros e custa muito para os gringos
reconhecerem que temos escritores geniais.
Quanto
a José Saramago, pelas blasfêmias proferidas, suas contas serão
acertadas com Deus, e eu não tenho nada com isto. Como amante da
literatura, continuarei lendo os seus livros e acreditando
incondicionalmente no Criador!
*Dídimo
Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.