OS MONSTROS DA HISTÓRIA
Dídimo Heleno Póvoa Aires*
11/01/2005
Quando
se fala em atrocidade, um nome, inevitavelmente, vem à cabeça: Hitler!
Mas agora, outro nome se juntará à galeria dos monstros da história da
humanidade: o do rei Leopoldo II, da Bélgica. E isso graças ao escritor
polonês, naturalizado britânico, Adam Hochschild, que no livro “O
Fantasma do Rei Leopoldo”, relata uma das maiores chacinas já cometidas
em nome do poder, à mando do rei belga, quando colonizou o Congo (atual
Zaire), no continente africano. As piores atrocidades aconteceram entre
1890 e 1910, tudo isso sem que o rei colocasse os pés na África e com o
aval dos líderes mundiais, que fizeram “vista grossa”, enquanto
milhares de congoleses sucumbiam ante a tirania do “filantrópico e
humanitário” rei, que aos olhos do mundo “apenas libertava aquele
povo medieval de uma ignorância crônica, levando até eles as benesses
da civilização”.
O
Congo Belga, como ficou conhecido na época, foi uma das grandes fontes de
riqueza para a minúscula Bélgica, que se enriqueceu com a venda de
marfins, que eram extraídos em detrimento da morte de centenas de
milhares de elefantes africanos, hoje ameaçados de extinção. Outra
fonte de riqueza foi a extração da borracha, responsável pelo
desaparecimento de muitas espécies
de árvores nativas daquela região.
Mas
foi em outro aspecto que a tirania do
rei Leopoldo mais se acentuou: na instituição do trabalho escravo. A
ordem era lucrar muito com pouco investimento, e isso, logicamente,
significava não se preocupar com a folha de pagamento. Muitos oficiais
belgas foram enviados ao Congo, após previamente estudarem um
“Manual”, onde se ensinavam as “técnicas” de como subjugar o
povo. No dizer do próprio autor, “poucas vezes a história nos oferece
uma chance como essa de ver instruções detalhadas de como executar um
regime de terror”.
No
livro, pode-se observar uma fotografia onde um oficial belga exibe,
orgulhoso, o seu “jardim de crânios”, que consistia em uma cerca ao
redor de sua casa, toda construída com cabeças africanas decepadas, numa
clara intenção de intimidar os que, porventura, ousassem desobedecer as
ordens de “Sua Majestade”. Num assombroso relato de uma africana,
pode-se imaginar o inferno em que viviam os congoleses: “Quando estávamos
todos reunidos – e havia muita gente de outras aldeias [...] – os
soldados trouxeram cestos de comida para nós carregarmos, dentro dos
quais havia carne humana defumada [...] ”.
A
extração do marfim era relativamente simples, pois os oficiais
armavam-se com rifles, matavam centenas de elefantes e os africanos,
amarrados por grossas correntes nas pernas, formavam longas filas e
carregavam cargas pesadíssimas até a margem do rio Congo, onde navios
esperavam para dali partirem rumo à Europa. Não é preciso dizer que
nesse trajeto – dos locais
das matanças até o rio – os negros eram constantemente açoitados e
muitos morriam por não suportar o peso da carga. A comida era uma ração,
distribuída uma única vez
ao dia e muito inferior àquela que era destinada aos cavalos do rei.
Para
extrair a borracha, houve um impasse. Como os negros precisavam subir nas
árvores, era impossível mantê-los acorrentados uns aos outros, o que
dificultava o recrutamento de “voluntários”. Mas, como não existia
obstáculo que pudesse deter o regime de terror, os belgas invadiam as
aldeias, raptavam mulheres e crianças e exigiam como pagamento por sua
liberdade uma quantia de látex que necessitava de 24 dias para ser extraído.
Dessa forma, vários africanos eram obrigados a se embrenhar na mata para
conseguirem a matéria-prima da borracha e muitos eram devorados por leões
e leopardos. Os que retornavam, muitas vezes encontravam esposas e filhos
mortos, ou violentados pelos soldados do rei. As mulheres mais bonitas
eram entregues aos oficiais, como forma de amenizar o celibato forçado em
que viviam.
Muitos
aventureiros de toda a Europa foram para o Congo, nessa época, atraídos
pelo dinheiro fácil conseguido através da venda de escravos. Outros
invadiam as aldeias que resistiam ao trabalho de extração da borracha e,
para cada bala disparada, tinham que apresentar a um oficial belga a mão
direita do africano morto, para só assim receberem o pagamento. Como
alguns utilizavam a munição para caçar, decepavam mãos de pessoas
vivas, no intuito de justificar a bala desperdiçada. A prova disso são várias
fotos espalhadas pelo livro, onde se vê homens, mulheres e até crianças
mutiladas.
A
cena presenciada pelo missionário presbiteriano William Sheppard,
descrita pelo autor, é chocante e dispensa maiores comentários: “No
dia em que chegou ao acampamento dos saqueadores, chamou-lhe a atenção
um grande número de objetos sendo defumados. O chefe ‘nos levou até
uma estrutura de paus, sob a qual queimava um fogo lento, e lá estavam
elas, as mãos direitas, contei-as todas, 81’. O chefe disse a Sheppard:
‘Veja! Aqui está nossa prova. Eu sempre tenho que cortar a mão direita
das pessoas que matamos, para poder mostrar ao Estado quantas foram’.
Com muito orgulho, mostrou a Sheppard alguns dos corpos de onde as mãos
tinham saído. A fumaça era para preservar as mãos no calor e umidade, já
que podia levar dias, ou semanas, até o chefe poder exibi-las ao oficial
encarregado e receber os créditos por suas matanças”.
Para se ter uma idéia de tanta desumanidade, basta observar o que disse um oficial, conhecido por Fiévez, tentando justificar a chacina de cem pessoas, quando estas não conseguiram fornecer aos seus soldados o peixe e a mandioca exigidos: “Eu fazia guerra contra eles. Um exemplo bastava: cem cabeças cortadas fora e a estação voltava a ser abastecida com fartura. Meu objetivo final é humanitário. Eu mato cem pessoas [...] mas isso permite que outras quinhentas vivam”. Como afirmou Edmund Morel, uma das maiores vozes que ecoaram contra o trabalho escravo dos africanos, “o Congo é uma sociedade secreta de assassinos, tendo um rei como cabeça”.
São
muitas as atrocidades, impossíveis de serem descritas em apenas um
artigo. Mas, para quem pensava que no ranking dos monstros da humanidade,
Hitler fosse imbatível, uma novidade: o pódio é também ocupado pelo
rei Leopoldo II, da Bélgica, que traz em seu currículo 8 milhões de
africanos dizimados, contra 6 milhões de judeus mortos, inseridos no histórico
do austríaco.
A
diferença entre os dois é que Hitler gostava de fazer propaganda de suas
bestialidades e suas vítimas foram um povo branco, enquanto o belga, que
optou pelos negros, como todo psicopata que se preze, matava com discrição,
com um inevitável sorriso nos lábios, além de passar uma imagem de
bonzinho para o resto do mundo. No mais, foram monstros paridos pela escória,
embora nascidos em épocas e circunstâncias diferentes.
O
poeta norte-americano Vachel Lindsay traduziu bem a impressão deixada por
Leopoldo, após sua morte: “Ouçam como grita o fantasma de Leopoldo/A
queimar no inferno por suas hostes sem mãos./Escutem como riem e berram
os demônios/Lá no inferno, a lhe cortar fora as mãos”.
*Dídimo
Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.