OS MANDAMENTOS

 

26/02/2004

 

Dídimo Heleno Póvoa Aires*

 

 

A vida do cristão não é fácil. Uma das coisas mais difíceis que conheço é seguir os dez mandamentos, à risca. Espero, sinceramente, que haja alguma forma de recorrermos de nossas faltas, lá no céu. Não é possível que o Tribunal Celeste seja assim tão radical e não ofereça aos pecadores a oportunidade de recuperar o seu lugar no Paraíso. Também sei que a coisa não é fácil para os muçulmanos, com seu rígido Corão, e nem para os judeus, com suas inflexíveis regras de comportamento extraídas da Torá. Se o cristão brasileiro tiver a mesma tendência para descumprir os dez mandamentos assim como tem para descumprir as leis do país, serão poucos os nacionais escolhidos. E a Justiça Divina, dizem os entendidos, costuma ser implacável, não admitindo o uso do famoso “jeitinho”, ao qual grande parte da nossa população está acostumada.

 

Todo início de ano as promessas mais absurdas costumam ser feitas. Geralmente elas duram, no máximo, até o carnaval.  Eu gostaria de conhecer alguém que se propusesse a cumprir, na íntegra, todos os dez mandamentos durante pelo menos um ano seguido. Ou melhor, ao menos até o carnaval. Para uma pessoa de bem, com algum esforço, pode-se tranqüilamente conseguir não matar, não roubar, honrar pai e mãe, não levantar falso testemunho contra o próximo, amar a Deus sobre todas as coisas e não pronunciar o Santo Nome em vão.

 

O problema surge quando temos de cumprir os outros quatro mandamentos: guardar domingos e festas, não cometer adultério, não cobiçar coisas alheias e não desejar a mulher do próximo. No meu entender, ou se cumpre todos os dez mandamentos ou de nada adianta; não dá para escolher esse ou aquele. O domingo é, tradicionalmente, dia de descanso para o trabalhador, dia em que, quase sempre, é reservado para se tomar uma cervejinha com os amigos em meio a uma boa batucada (o primeiro pecado), ou, para alguns, o dia em que se aproveita para comerciar algum produto na feira e obter lucro (outro pecado). Portanto, na atual situação econômica e tendo em vista a característica boêmia do brasileiro, dificilmente o povo obedece este mandamento.

 

E o adultério? Ah, o adultério ... está tão banalizado, que até do Código Penal querem retirá-lo, pois perdeu o sentido punir alguém por cometer tal crime. Além disso, faltariam cadeias para tanto meliante. Grande parte da humanidade está fadada a ir para o inferno por conta deste mandamento. Não cobiçar coisas alheias é outro pecado difícil de se evitar, cometido principalmente pelos invejosos (e como são muitos). São bastante conhecidas as histórias de vizinhos que cobiçam quase tudo o que é do outro. Num país em que a tônica é a má distribuição de renda, a cobiça é prática comum. O Brasil é a terra do “olho gordo”.   

 

Mas o pior de todos, talvez, seja o que diz: “não desejar a mulher do próximo”. Na tentativa de justificar suas faltas, malandramente o brasileiro já tentou interpretar a Lei Divina como se esta se referisse apenas à mulher que estivesse realmente próxima do próximo. Foi apenas a tentativa de colocar em prática o velho adágio: “o que os olhos não vêem o coração não sente”. Resta combinar com Deus e saber se Ele está de acordo com isso. Sobre este mandamento, tenho algumas dúvidas: ele fala que não se deve desejar a MULHER do próximo. Assim, interpretando-o literalmente, chego à conclusão de que somente os homens poderão cometer este pecado – ou, no máximo, as lésbicas. Ou seja, para os homens são dez mandamentos, mas para as mulheres são apenas nove.

 

Como se vê, o caminho para se tornar um bom cristão é árduo. O que me tranqüiliza um pouco é saber que, havendo sincero arrependimento, Deus está sempre pronto a perdoar. O grande problema é que, dos inúmeros pecados que cometo, de muitos não consigo me arrepender. Às vezes, durante minhas orações, sinto que estou sendo hipócrita e cínico com o Criador. Ao notar que Ele percebe o meu fingimento, fico envergonhado e digo: “tudo bem, Senhor, sei que és onisciente e sabes o que estou pensando. Portanto, peço-te humildemente: concede-me a capacidade de arrepender-me dos meus pecados, já que não consigo parar de cometê-los”. Faço uso da retórica com a esperança de que Deus talvez se comova e ponha Sua misericordiosa mão sobre a minha cabeça e perdoe este pobre filho pecador.

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado.

 

 

       

Sair