Calote oficial
DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*
08/10/2006
É possível vislumbrar o semblante de desânimo dos que têm crédito com o Poder Público, em virtude de sentença judicial, uma vez que tais dívidas são pagas através dos famigerados precatórios. Como se sabe, o Estado (no sentido amplo da palavra) é o que mais emperra os tribunais do País, contribuindo para abarrotar de processos o Judiciário. É até compreensível que a Fazenda Pública disponha de alguns privilégios legais, como, por exemplo, a contagem de prazo mais elástica. O que não se concebe é a forma (constitucional, diga-se de passagem) que utiliza para honrar seus compromissos.
A Constituição Federal, em seu art. 100, diz que os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual e Municipal serão feitos exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios, com exceção dos créditos de natureza alimentícia, que podem furar a fila. No Brasil, talvez essa seja a única fila maior do que a do INSS.
A situação do credor de condenação judicial do Poder Público é de dar dó. Como ensina o administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, caso seja obedecida a Constituição, o sujeito pode amargar de 18 a 30 meses de espera para ver o seu rico dinheirinho no bolso. E isso – é bom que se repita – se for obedecida a Constituição. Para se comprovar o que afirmo, façamos o seguinte raciocínio: o precatório deve ser apresentado até o dia 1º de julho do ano anterior ao recebimento. Por exemplo, se incluído até a citada data de 2006, o valor a ser pago entrará no orçamento que vai vigorar no ano de 2007. Como sabemos que a Fazenda Pública costuma pagar apenas no apagar das luzes, o credor receberá em dezembro de 2007, ou seja, 18 meses depois. Entretanto, caso o precatório fosse apresentado em 2 de julho (um dia após o prazo constitucional), não entraria no orçamento de 2007, só no de 2008, significando que poderia ser pago até dezembro de 2009, passados “apenas” 30 meses.
O pior de tudo é que o Poder Público, quase sempre, sequer obedece a Constituição, deixando ultrapassar todos os prazos, os quais já são bastante dilatados, como se viu acima. É claro que contra tais abusos há punições previstas, como a intervenção federal nos Estados e a estadual, nos Municípios (arts. 34, V, “a” e 35, I, da CF). Ou, então, o impeachment do Presidente da República (art. 85, VII, da CF). Isso até soa hilário, levando-se em consideração que, se nem mesmo por outras boas e justas razões se cogitou punir o Chefe Maior da Nação, quanto mais por inconstitucionalidade no pagamento de precatórios.
Mesmo assim, são muitos os pedidos de intervenção federal em Estados e estadual, em Municípios. Com tudo isso, responsabilizar um ente da Federação por descumprimento de precatório, como diz Celso Antônio, “tem caráter de ficção. Ou seja: sua existência em muitas partes do País tem uma realidade próxima àquela que se supõe seja a de um saci, de uma iara, de um gnomo ou de uma fada”.
Através da documentação existente na Comissão de Precatórios da OAB de São Paulo, Bahia, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e outros Estados, conforme atesta o jurista antes referido, pode-se constatar o descaso do Poder Público em pagar suas dívidas. Os precatórios trabalhistas do Ceará, por exemplo, não são pagos há 20 anos. Isto mesmo: 20 anos! Não é difícil imaginar que muitos dos credores, nessa altura, morreram sem ver a cor do dinheiro. Mais uma vez, os exemplos que vêm de cima são os piores possíveis. O Brasil, comprovadamente, é um paraíso onde pululam caloteiros, a começar por muitos entes públicos, que oficializaram essa prática.
*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado.