FUTEBOL SEM BOLA
Dídimo Heleno Póvoa Aires*
28/02/2004
Naquele tempo, corriqueiramente as cidades vizinhas a Dianópolis se
organizavam em torno de algum campeonato de futebol. Almas e Natividade eram
as outras participantes, com suas respectivas seleções. Pelo regulamento, o
dono da casa, que detinha o mando de campo, ficava incumbido de providenciar
a bola e o árbitro. O jogo deveria começar às quatro horas da tarde, com
tolerância máxima até quatro e quinze, impreterivelmente, caso contrário o
time causador do atraso perderia por WO (perda dos pontos pelo não
comparecimento).
Dr. Wilson, meu padrinho, que narrou-me esta inusitada história, era o
técnico do time de Dianópolis. Naquela tarde, o jogo seria na cidade de Almas e o time da casa, obviamente, teria que levar todos os
apetrechos, tais como bola, apito, bandeirinhas etc. Na época, o presidente
da Liga de Futebol, responsável pela organização do torneio, era o temido
Gustavão, conhecido por sua postura firme, muitas vezes até agressiva.
Depois de uma longa viagem a bordo de um caminhão marca Chevrolet, por uma
estrada de chão repleta de “costelas de vaca”, onde os atletas dianopolinos
se acomodavam ao estilo dos bóias-frias, chegavam ao destino com a bunda
pisada, dolorida pelos solavancos da jornada. Mesmo assim, ainda encontravam
força e empolgação para enfrentar noventa minutos de correria e o perigo das
chuteiras de cravo, confeccionadas pelo lendário “Gilbertão do Instituto”,
prontas para escalavrar as canelas mais afoitas.
Por volta das três da tarde o caminhãozão apontou na entrada da cidade de
Almas, acompanhado por uma nuvem espessa de poeira amarronzada, que
desprendia do pó da estrada, deixando apenas os olhos e os dentes dos
jogadores à mostra. Faltavam quinze minutos para as quatro horas e o time
dianopolino já fazia o seu aquecimento.
Quatro da tarde. A torcida eufórica e fanática apoiava seu time e lotava o
campo de terra, localizado quase no centro da cidade. Gustavão se mostrava
nervoso, conversava com o juiz da partida e discutia com os técnicos. Apesar
do adiantado da hora, não havia bola, pois a pessoa recomendada para
trazê-la, até aquele momento não havia aparecido. O tempo passava e o
regulamento não deixava dúvida: a tolerância seria de apenas quinze minutos.
Extrapolado o prazo, o time de Almas perderia os pontos.
Gustavão, que possuía o hábito de comparecer às partidas de futebol
devidamente acompanhado por um revólver calibre 38 na cintura, era temido
por todos aqueles que tinham um mínimo de juízo. Quatro e treze, nada de
bola. O Presidente da Liga perdeu a paciência, chamou o árbitro, sussurrou
alguma ameaça em seu ouvido e determinou o início do jogo, sem bola mesmo.
Quatro e quatorze, os jogadores a postos, cada um em sua posição. Tio
Wilson, estarrecido à beira do campo, recusava-se a acreditar na cena que
assistia. Gustavão gritou: pode começar! O juiz apitou e o jogo começou sem
bola. O time de Dianópolis partiu pra cima e a torcida entusiasmada
acompanhava atentamente todos os lances. Aonde um jogador ia, os outros
acompanhavam. Os choques das canelas eram ouvidos a um raio de cinqüenta
metros. Até faltas eram marcadas. A bola fictícia era ajeitada com carinho
pelo cobrador, por cima de uma touceira de malva, e a torcida gritava aquele
“uuuuuuuu”, imaginando que a pelota havia raspado na trave.
Depois de alguns minutos desse inusitado futebol, a tal bola chegou. O juiz
paralisou a partida e recomeçou-a logo em seguida, com o jogo indo até o seu
final, como se nada de estranho tivesse acontecido. Almas perdeu, mas
Gustavão evitou que cometessem o vexame de uma desclassificação por WO.
*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado e escritor.