ÓDIO VS. ÓDIO

 

PARA ADVOGADO ESTUDIOSO DO CONFLITO ENTRE PALESTINOS E JUDEUS, O FANATISMO RELIGIOSO ESTÁ NO CENTRO DO ÓDIO ENTRE OS DOIS POVOS.

E QUE A PAZ NA REGIÃO É UM SONHO IMPOSSÍVEL.

 

“A PAZ NÃO É POSSÍVEL SIMPLESMENTE PORQUE O FANATISMO RELIGIOSO É ALGO QUE SE APRENDE DENTRO DE CASA, AINDA NO BERÇO”.

 

ELISANGELA FARIAS

Palmas

 

O conflito entre árabes e judeus, que se arrasta há décadas e que teve mais um capítulo sangrento este mês, é fruto de muito ódio alimentado pelo fanatismo, diz o advogado Dídimo Heleno Póvoa Aires, um estudioso da guerra entre os dois povos desde a adolescência. Cético em relação ao “Deus das religiões”, ele revela que todo o sentimento de ódio na região passa de geração para geração. “Aqueles que presenciam a carnificina tendem a alimentar ainda mais o rancor pelo vizinho, explica.

 

É nesse cenário que ele vê a paz completa na região como um sonho quase impossível. “Enquanto existir alguém acreditando que ao explodir o seu corpo se transformará num mártir e encontrará algumas virgens lá no céu, as coisas ficam bastante difíceis”, completa o advogado, que desde o ano passado ministra a palestra Para entender o conflito entre palestinos e judeus, cujo extrato foi tirado de um ensaio sobre o assunto publicado em seu livro Artigos e Crônicas. A palestra é uma das mais indicadas pelo público para fazer parte da programação da quinta edição do Salão do Livro do Tocantins. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

Quando e por que surgiu o interesse pelo conflito entre palestinos e judeus?

Sempre fui fascinado por histórias. E as melhores estão justamente na Bíblia. Quando comecei a lê-la, ainda adolescente, fiquei especialmente interessado no episódio em que Noé (o da arca) tomou um porre e tirou a roupa diante de todos. No dia seguinte tratou de colocar os irmãos Sem (antepassado dos judeus, daí o termo semita) e Cam (segundo alguns historiadores, antepassado dos árabes) um contra o outro, tudo porque o segundo teria visto a sua nudez. Está tudo lá no Livro de Gênesis. Daquele momento em diante, passei a pesquisar cada vez mais sobre o conflito. 

No seu livro Artigos e Crônicas há um apêndice dedicado ao conflito. Em quais as fontes se baseou para escrever essa espécie de documentário?

Como disse, a primeira delas foi a própria Bíblia. Mas já li dezenas de livros que, direta ou indiretamente, tratam do assunto. Para citar apenas alguns: Oriente Médio, Uma Região de Conflitos, de Nelson Bacic Olic (aliás um ótimo resumo sobre a questão); Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões, de Karen Armstrong; O Oriente Médio e o Mundo Árabe, de Maria Yedda; O que é a Questão Palestina, de Helena Salem, e o Movimento Palestino, de Mustafá Yazbek.

Esse documentário foi a fonte para o senhor formular a palestra que vem ministrando sobre o assunto aqui no Estado?

Sem dúvida. Muitas pessoas que tiveram a oportunidade de ler o texto me ligaram e disseram que finalmente haviam entendido um pouco do assunto, vez que se trata de um resumo didático. Diante disso, resolvi elaborar a palestra, apresentada através de data-show, com mapa e diagramas, os quais facilitam o entendimento.    

Como surgiu a ideia de montar a palestra, seu foco principal e como tem sido a receptividade do público que a assiste?

A ideia de montá-la surgiu a partir do interesse das pessoas pela questão. O assunto envolve política, economia, religião, aspectos étnicos e nacionais. É natural que haja curiosidade. Ademais, é um tema que está na mídia há muitos anos, mas nem sempre mostrado de forma didática e explicativa. O público tem sido muito receptivo, participando ativamente dos debates ao final da palestra. E existem aqueles que assistem duas, três e até mais vezes, no intuito de consolidar o conhecimento.

Por falar nisso, a palestra está entre as mais cotadas pelo público tocantinense para integrar a programação do 5º  Salão do Livro do Tocantins...

Fiquei muitíssimo lisonjeado com tudo isso. Nada mais gratificante do que o reconhecimento público do seu trabalho. E também me deixou feliz o fato de ser o tocantinense mais cotado e figurar entre outros nomes já consagrados, como Paulo Coelho, Maurício de Souza, Arnaldo Jabor, Leonardo Boff, entre outros. Espero que o convite para participar desse importante evento possa ser formalizado através da Secretaria de Educação.

O senhor acha que a volta do enfrentamento ajudou a despertar o interesse na sua palestra?

Sim, bastante. Mas esse é um assunto que frequenta a mídia do mundo todo, desde a criação do Estado de Israel. E infelizmente estará por muitos e muitos anos invadindo as nossas casas através dos noticiários da TV e dos jornais escritos, além das revistas. Por isso, entendo que a minha palestra, independentemente de haver ou não um conflito acontecendo, será sempre solicitada. Tudo o que já aconteceu é suficientemente triste para alimentar o assunto e seria muito bom que os embates estancassem de vez.

Na sua opinião, o que mudou no conflito entre os dois povos desde a primeira Intifada (revolta palestina nos territórios ocupados por Israel)?

O ódio, naquela região, é um sentimento que passa de geração em geração. Na verdade, cada vez que acontece um conflito, aqueles que presenciam a carnificina tendem a alimentar ainda mais o rancor pelo vizinho. Por isso é um assunto difícil de resolver, afinal os sentimentos não se arrefecem através de decretos e vontade política. O jovem de hoje que assiste os pais, amigos e parentes sendo mortos será o soldado de amanhã. Ou, quem sabe, um homem-bomba em potencial. Muda-se a forma de enfrentamento, a tecnologia utilizada. Mas a essência, aquilo que alimenta o conflito e que motiva o terror, que é o desprezo pelo outro, apenas aumentou de lá para cá.

Até que ponto a ascensão do grupo radical Hamas ao poder na Palestina impediu o processo de negociação de paz iniciado por Yasser Arafat?

O Hamas é um grupo radical, que prega a destruição do Estado Judeu e a criação de um Estado Palestino único na região. Só por isso, torna-se difícil abrir qualquer tipo de negociação. Yasser Arafat avançou muito, sendo seguido por Abbas, presidente da Autoridade Palestina, que se encontra relegado à Cisjordânia, justamente porque os dirigentes do Hamas o consideram um traidor por aceitar negociar com Israel. E a inconsequência do Hamas é seguida pelo Irã, que tem um presidente que pensa igual. O Hamas presente na Faixa de Gaza, tendo em vista a proximidade com Israel, aumenta ainda mais a tensão, dificultando os acordos de paz. Mas matar civis, como fez Israel, também não ajuda em nada.

Há muita polêmica sobre a participação dos Estados Unidos, das outras grandes potências e da ONU na mediação do conflito...

Os EUA, que dominam a ONU, sempre foram parceiros de Israel e agem com muita hipocrisia quando defendem a paz e, ao mesmo tempo, alimentam belicamente Israel, vendendo armas poderosas. Há muito interesse político-econômico nisso tudo. E o Estado de Israel deve se precaver para não se tornar um “Estado-bunker”, cercado de inimigos por todos os lados. A ONU, desde que foi solenemente desprezada na Guerra do Iraque, perdeu completamente seu poder de intimidação. Virou espécie de fantoche dos americanos. Barack Obama, que durante as eleições cometeu a insensatez de dizer que Jerusalém deveria ser administrada pelos judeus, parece ter retomado a lucidez. Nele reside a esperança de que alguma proposta de acordo seja colocada em prática.    

Nesta guerra que já dura desde a criação do Estado de Israel, em 1948, há demonstrações de radicalismo de ambas as partes. Na sua concepção, o fanatismo de "matar" ou "morrer" em nome de Deus é a principal causa dos conflitos ou há também um componente econômico aí?

Claro que há um componente econômico, além de étnico, nacional, ideológico e político. Mas a questão religiosa alimenta o ódio entre os dois povos. Um dos grandes problemas da religião é que o Deus do outro é sempre o pior. Essa é, também, uma guerra entre Javé, o Deus dos judeus, e Alá, da maioria árabe-palestina. Como diria Rich Jeni, um comediante americano, a respeito das guerras religiosas, “eles estão basicamente se matando uns aos outros para ver quem tem o melhor amigo imaginário”. Falta sensatez no meio de tudo isso. 

Por outro lado, há demonstrações de convivência pacífica entre árabes e israelenses dentro da própria região do conflito. Isso não é um indicativo de que a paz é possível?

Não creio que a paz completa seja possível, mas acredito que a intolerância possa se arrefecer. E a criação de um Estado Palestino, aos moldes de Israel, certamente contribuiria muito para isso. E a paz não é possível simplesmente porque o fanatismo religioso é algo que se aprende dentro de casa, ainda no berço. Enquanto existir alguém acreditando que ao explodir o seu corpo se transformará num mártir e encontrará algumas virgens lá no céu, as coisas ficam muito mais difíceis. Mas é claro que existem os que pensam diferente, que conseguem viver dignamente lado a lado, como verdadeiros irmãos.  

Dizem que a mídia acaba "sensacionalizando"  os conflitos entre judeus e palestinos. Concorda com isso, ou realmente o confronto existe como é noticiado?

Existem os veículos que apresentam conotação sensacionalista, mas não são todos. E seria leviano dizer que tudo não passa de sensacionalismo. O problema existe, é real e cresce a cada dia. O mundo precisa encontrar uma solução, pois dali poderá surgir uma guerra de proporções globais.

O senhor tem projeto para visitar o Oriente Médio?

Claro. Mas de preferência depois de um sólido acordo de paz entre os envolvidos no conflito.

O senhor é de uma família bastante religiosa, seus pais são católicos tradicionais. O senhor acredita no Deus católico e como vê a religião na vida das pessoas?

Eu não acredito no Deus das religiões, dessa forma pessoalizada, como um Ser que está em algum lugar me vigiando dia e noite, anotando numa caderneta os meus pecados. Mas acredito num princípio criador. A teoria evolucionista é, para mim, muito mais crível, mas isso não elimina um sopro divino. A ciência ainda não conseguiu provar como tudo começou. De igual forma, também não conseguiu provar que o Deus das religiões não existe. Nesse caso, tenho de trabalhar com probabilidades. E quando vejo a guerra no Oriente Médio, a miséria na África e a intolerância na Irlanda, tenho uma probabilidade a favor da não existência desse Deus pessoal. Se ele existe e não faz nada, é omisso e cruel, portanto não pode ser um Deus. Se existe e não faz nada porque não pode, não é onipotente, daí não poder ser chamado Deus. Muitos me dirão que é o tal livre arbítrio, mas tudo que acontece de bom em nossa vida os religiosos atribuem a Deus. Se se trata de livre arbítrio, porque as boas atitudes não podem ser atribuídas às próprias pessoas? Já o mal, dizem os mesmos religiosos, é obra de satanás. O Deus das religiões não seria possível sem o diabo, pois é nele que se deve colocar a culpa pelos infortúnios do mundo e das pessoas. Mas vejo a religião, quando não leva ao fanatismo, como algo bom, embora o homem possa ser bom sem ela, apenas seguindo os princípios éticos e morais. O amor não é monopólio das religiões. Não consigo acreditar que a Terra tenha apenas seis mil anos, que os dinossauros não couberam na arca de Noé e que todos os outros animais foram transportados nela, embora se saiba que só de besouros existem cerca de 350 mil espécies. Como essas espécies couberam na arca? Também não há explicação plausível na Bíblia para o surgimento repentino da mulher de Caim e nem ao fato de Eliseu ter mandado uma ursa, em nome de Deus, matar 42 criancinhas apenas por elas terem-no chamado de careca. Há religiosos que não acreditam nisso, é verdade. Outros vão dizer que se trata de linguagem figurada ou coisa do gênero, mas isso só acontece quando a passagem é inexplicável. Mas há quem acredita, embora eu não me importe com isso, desde que esse alguém respeite minha integridade física. Eu tenho crença na crença no Deus das religiões, visto que ela existe, é real, ou seja, eu acredito em muitas pessoas que acreditam nesse Deus, como os meus pais, por exemplo, que têm uma vida ética e são pessoas do bem. A religião, para eles, é algo positivo. É preciso tolerância no mundo, e as maiores intolerâncias, infelizmente, acontecem justamente por conta do fanatismo religioso. Deus deve ser algo muito mais complexo, ou muito mais simples, do que pregam as religiões.       

 

BIOGRAFIA: Autor dos livros Artigos e Crônicas, Os Impostores, A Evolução da Descrença, Ideias no Cio e Livros Sangrentos, Dídimo Heleno Póvoa Aires nasceu em Dianópolis, Estado do Tocantins, em 15 de dezembro de 1970. Formou-se na Faculdade de Direito de Anápolis, Estado de Goiás, no ano de 1996.  Retornou ao Tocantins no início de 1997, vindo a residir em Palmas, onde assumiu o cargo de chefe de gabinete parlamentar. No mesmo ano casou-se com a bióloga Lêda Aires, com quem tem dois filhos, Eduardo e Ricardo.  Em 1998 foi nomeado chefe de gabinete da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Tocantins. Em 1999 foi nomeado assessor jurídico de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, cargo que ainda ocupa. É titular das cadeiras nº 08, da Academia Tocantinense Maçônica de Letras, e nº 16, da Academia Palmense de Letras. É articulista-colaborador do Jornal do Tocantins desde 1993, e autor dos livros. É autor do ensaio intitulado Palestinos e Judeus, o qual retrata o conflito existente entre esses dois povos. Em parceria com Lêda Aires, sua esposa, organizou o livro Textos Anarquistas, obra que reúne diversos escritos raros de autores como Oscar Wilde, Mikhail Bakunin, Leon Tolstoi, Emma Goldman, entre outros.

       

Sai