FRANCISCO DE BRITO

 


 

 

TRANSCRIÇÃO DA Entrevista CONCEDIDA POR Francisco de Britto AO JORNAL OPÇÃO

Político, escritor e articulista de jornal, Francisco de Britto era uma figura ímpar. Aos 89 anos (OUT/1994), concedeu uma entrevista surpreendente ao Jornal Opção — sua última grande entrevista —, em que dissertou, vagarosa e lucidamente, sobre a política goiana e até sobre sua vida pessoal. A entrevista é longa, mas aquele que fizer a travessia sairá maravilhado. Intelectual que detestava suavizar o que não era suave, Chico de Britto era adepto da linguagem direta, sem subterfúgios. Por exemplo: “Hoje sou um franco-atirador. Critiquei todos os candidatos nessa campanha (Nota da redação: a campanha para governador de 1994. Os candidatos principais foram Lúcia Vânia, Ronaldo Caiado e Maguito Vilela, este, o eleito). O Caiado foi um deles, quando quis se aproximar do Iris Rezende, escrevi que ele estava mergulhando em uma piscina seca”. Implodiu a comparação entre Pedro Ludovico e Iris Rezende: “O Pedro Ludovico não cortejava a popularidade. O Iris é essencialmente populista, mesmo tendo sido um pouco menos nesse último mandato”. Haroldo de Britto, filho de Chico, participou da entrevista, como entrevistador e, às vezes, como entrevistado. Chico e Haroldo já faleceram. A entrevista foi publicada em outubro de 1994.  

A guerra do tronco

Mesmo indiretamente, Francisco de Britto viveu episódios de romance. Sua mudança para Buriti Alegre foi motivada pelos acontecimentos que se transformaram numa das principais obras de Bernardo Elis.

 

José Maria e Silva — Em que cidade o senhor nasceu?  

Nasci numa fazenda em Conceição do Norte, hoje Tocantins, em 1904. Faz muito tempo. Meu pai se chamava Serafim de Britto Guimarães, e minha mãe, Antônia Hermano de Britto. Lá existia apenas uma escola isolada. Meu professor era muito atrasado, também não tinha freqüentado escola nenhuma, apesar de ter uma grande vocação para o ensino. Vim com 14 anos para o Sul, que em termos de educação não era muito diferente do Norte. Em Buriti Alegre só tinha uma escola isolada.

 

José Luiz Bittencourt — Sua vinda para Buriti Alegre foi depois da revolta de São José do Duro?

Vim em conseqüência dela. Meu pai foi solidário com o irmão dele, meu tio Sebastião de Britto Guimarães, coletor que denunciou o Abílio Wolney.  

 

Haroldo de Britto — Esse meu tio Sebastião aparece no romance O Tronco, do Bernardo Élis, como Vicente Lemos. Ele é o pai da minha mãe, Antonieta.

Era criança quando estourou a revolta. Mas sempre soube que a família Wolney era muito prepotente, pairava acima da lei. O Abílio Wolney era deputado estadual e praticava um mandonismo absurdo. Meu tio era coletor, e o juiz se chamava Manoel de Almeida.

O Abílio pegou um inventário de um tal Vicente Belém e sonegou todos os bens. Como em cidade pequena nada fica escondido, meu tio ficou sabendo e se opôs. Não aceitou a declaração de bens do Abílio, e o juiz concordou com a impugnação. Então, Abílio foi à cidade com seus jagunços, encheu o fórum e fez com que o inventário fosse homologado à força. Meu tio viu o desmando e disse que poderiam matá-lo, cortar suas mãos, que, de qualquer jeito, ele iria denunciar o fato às autoridades. E denunciou.

O Estado enviou Calmon Nogueira da Gama para investigar o caso. Ele iniciou o inquérito, mas o pessoal do Abílio não atendeu à convocação. O juiz ficou sabendo que eles iam fugir e mandou um policial na fazenda para prendê-los. O velho Wolney estava com um capataz e, quando se viu cercado, saltou no chão e entrou num canavial. Ao sair do outro lado, foi morto pela polícia. Começou aí a covardia da polícia, que ainda fez toda sorte de estrepolia.

Abílio Wolney conseguiu escapar, arrebanhou jagunços na Bahia e atacou a cidade. A munição da polícia não valia nada, não dava tiro. Mas ela pôs todos os Wolneys no tronco, como reféns. Wolney disse depois que teve medo de atacar, ao saber que sua família estava presa, mas, premido pelos chefes de jagunço, foi obrigado a invadir a cidade. Quando começou o tiroteio, a polícia matou todo mundo.
O absurdo dessa história é que lá todo mundo era parente, compadre. Não sei como aconteceu uma barbaridade daquelas. Um genro do velho Wolney, Benedito Pinto, atacadista, era muito amigo de meu pai. Tinha outro irmão do Abílio Wolney, que era uma dama de tão fino. Não saía da casa de meu tio.  

 

José Luiz Bittencourt — Abílio parece que se ligou ao grupo de Juracy Magalhães, na Bahia. Juracy parece que o protegeu durante algum tempo.

Ele chegou a prefeito na Bahia.  

 

Euler Belém — O escritor Bernardo Élis retratou bem esses episódios em seu romance O Tronco?
Retratou com uma fidelidade impressionante. Meu tio e sogro era um homem verdadeiro, que dizia até aquelas coisas contrárias a ele próprio. Durante muito tempo, ele foi com o Haroldo, toda noite, na casa do Bernardo contar a história. O próprio Bernardo me disse depois: “Olha, eu devia ter colocado seu tio como co-autor do romance porque nunca vi romancista igual àquele”.  

 

José Asmar — Foi o Manuelzão do Bernardo.

O livro é de uma fidelidade impressionante. O José Liberato Póvoa (hoje desembargador do Tocantins e cronista), muito criança ainda quando ocorreram esses fatos, resolveu investigar a veracidade do romance e chegou à conclusão, conversando com as pessoas de Dianópolis, que o romance era fiel até mesmo nas questões íntimas — o jeito de sorrir das pessoas, de andar, de falar.  

 

 

Haroldo de Britto — No começo da década de 50, o Abílio Wolney me procurou aqui em Goiânia, e pediu que eu intermediasse um encontro com meu avô Sebastião. Falei com meu avô e ele disse: “Vou pedir a Antonieta, minha filha, para ir se encontrar com ele. Não vou porque estou muito velho e meu coração não agüenta. Saio de lá morto. Mas eu gostaria de ir para chorar com ele e lamentar os que já morreram. Não vou por um único motivo: não resisto”. Wolney também estava muito velho. Era uma figura e tanto: magrinho, de cavanhaque, muito bem vestido. Parecia um conselheiro do Segundo Império, com um chapéu coco. E falava de uma maneira muito impositiva, com grande autoridade.

Anos depois, uma filha dele hospedou-se comigo. Quando fui deputado, no governo de Coimbra Bueno, os integralistas que apoiavam o governo demitiram duas filhas do Abílio. Elas apelaram para uma parenta minha. Fui ao governador e disse a ele que não havia motivo nenhum para a demissão. Então, ele mandou revogar o ato. Um dia, fui conhecer Dianópolis. Fui recepcionado por essas duas moças no campo de aviação. Elas me trataram com a maior distinção. Nunca houve esse ódio entre as famílias. Para mim a culpa toda desse episódio foi do Abílio Wolney, que tinha uma ascendência muito grande sobre o pai, que era muito prepotente.  

 

 

Euler Belém — Mas o senhor fez duras críticas ao Abílio Wolney.

Haroldo de Britto — Tenho aqui um artigo do senhor, chamado A Tragédia Nortista: “O caso macabro do Duro, tão proclamado e interpretado pelos que não o conhecem, ficou célebre nos anais da história simples de Goiás, e ainda hoje no mistério que o envolve, muita gente o ignora, dispensando por isso grande parte de simpatia e compaixão à família Wolney, a única responsável, aliás por tudo quanto tem infelicitado aquela zona nortista. As horríveis inverdades publicadas na revista Paranaíba, editada por Moisés Santana, e estrondosos noticiários de jornais mal informados teceram um mundo de dúvidas e incertezas ao redor dos fatos que, nas linhas que ora inicio, propus-me a esclarecer, pois ninguém, posto que em linguagem pouco correta e elegante, poderá apreciá-las melhor que eu, que as presenciei vendo crescer o tumor até estourar ao golpe do bisturi. Muitos julgam que Abílio Wolney, agindo à mão armada contra o governo do Estado, vingava a morte do pai, assassinado pela polícia em sua fazenda Buracão, na noite de 23 para 24 de dezembro de 1918. Mas não. O seu coração perverso nunca palpitou na ternura do amor filial, porquanto se assim fosse não teria ele, nessa sede bestial da vingança, sacrificado a maior parte de sua família, atacando um punhado de casas onde se refugiavam não só a força policial, mas sua mãe, irmãos, filhos, cunhados, primos, parentes e amigos. Seu ideal era outro: ideal de grandeza, de triunfar pela força e, mesmo conhecendo o perigo a que estavam expostos os seus, mandou uma ordem de cangaceiros circular a pequena Vila do Duro e matar sem contemplação. Buscarei estereotipar todas as fases da família Wolney e mostrarei, sem espírito de parcialidade, todos os seus grandiosos sentimentos para que os leitores conheçam a verdade dos fatos e não andem por aí a confundir amor filial com canibalismo”.

Ora, mas eu acabei de dizer isso. O culpado de tudo foi a mania de grandeza do Abílio Wolney. Quando a força policial soube que os jagunços vinham, prenderam os parentes dele como reféns. Uma irmã do Abílio se propôs a ir ao encontro dele para que desistisse do ataque. Os policiais não queriam, mas acabaram sendo convencidos a deixá-la ir. Quando ela contou para o Abílio em que pé estava a situação, ele baqueou. Mas Humberto Dourado, Abílio Batata e outros não deixaram Abílio desistir. Estavam sequiosos por roubo, queriam saquear a cidade.

 

Francisco de Brito nasceu a 06/12/1904 em Conceição do Tocantins e faleceu em Goiânia a 10/11/1995, antropólogo, deputado estadual, sociólogo, e escritor jornalista. Como parlamentar nos anos 50, exerceu importante liderança em Goiás para aprovar projeto de lei propondo a doação de terras para sediar a área do Distrito Federal, local onde se construiu Brasília. Fez vários pronunciamentos na Assembléia Legislativa goiana para denunciar a situação de abandono e isolamento do então Norte, ao reivindicar a independência da região para se criar o Estado do Tocantins. Munido de farta documentação no plenário da Assembléia Legislativa, denunciou que todo o perímetro urbano do então Córrego Mutuca, local em que se construía o núcleo urbano de Gurupi, era grilagem de terras ilegalmente registrada em cartório por um conhecido advogado de Goiânia. Membro da Academia Goiana de Letras e da Associação Goiana de Imprensa, Chico de Brito é autor de "Memórias de Outros Tempos" (contendo farta memória para recompor a verdadeira história do Tocantins). "Terras Bárbaras" e "massapê". Foi colaborador dos principais jornais de Goiânia e do Triângulo mineiro, além de correspondente do jornal "O Globo" e das revistas "Vida Doméstica" e "Fon-Fon". Francisco de Britto, um nome a ser lembrado nas salas de aula, nas praças e avenidas, nas câmaras municipais e na Assembléia Legislativa.

 

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