HONORÃO E CHICO ME-DÁ              

04/12/2004

 

Liberato Póvoa

 

Morando na Santa Maria, Honório Cardoso parecia um nobre: negro, alto, an­dar espigado, gestos finos, mãos calosas e muito respeito no tratar os outros.  Com muita propriedade retratou-o o prefaciador de meu livro (Rua do Grito, 162), José Alencar, quando viu um Honorão a "pose de es­cravo liberto".

Muito se conta sobre Honorão: ora, verdade; ora, invenção do povo.  Ver­dade, por exemplo, foi o episódio em que, vendo a cana esturricada pela seca braba e, mal­grado as penitências na cruz-das-almas, a chuva refugava, seu irmão caçula, Lolô, de­liberou por conta e risco próprios, ir até à rua e furtar dos braços de São José o Me­nino-Deus, dizendo que só o devolveria quando o padroeiro mandasse chuva.

Honorão ficou terrificado - beato que era - quando soube da ação revel do seu irmão benjamin, imaginando um castigo de cima, mas acalmou-se quando Lolô disse ser apenas um memento para o santo carpinteiro lembrar-se da precisão do povo: com tantos pedidos no mundo inteiro, o padroeiro podia atrapalhar-se, man­dando sol aos que pediam chuva e esta aos que pediam sol.  Assim, ficava bem con­sinado: chuva pra quem tinha goderado o Menino-Deus.

No mesmo dia, Honorão organizou uma procissão de desagravo ao santo, para ir devolver-lhe o sagrado pimpolho de olhos de conta.  E ao retomarem da rua sob o sol causticante a cozinhar o ju­ízo, já desceram os morros da Santa Maria de­baixo do maior pé-d'água, e não houve mais perca de cana e mantimentos por falta de chuva, dali em vante.

A postura de Honorão era elegante, lembrando um patriarca de tribo, ento­nado sempre num paletó de brim e com a camisa de algodão cru abotoada até o gogó.  Suas decisões era seguras, só to­madas após demorados estudos sobre a via­bilidade de qualquer providência: levou meses e meses a estudar se punha no seu sí­tio o nome Nova Vida ou Vida Nova, e acabou botando um deles - nem sei qual - que, de resto, não pegou.  Permaneceu o tradicional e imutável Sovaco da Ema.

Embora muito cortês e fino, Honorão era cheio de sestros: só bebia água de ca­baça ou de mo­ringa, pois dizia que água de pote, de tanto entrar copo e sair copo, era sobejo dos outros.

Seus hábitos eram sagrados, e nada no mundo o fazia modificar um costume, por mais esta­pafúrdio que fosse.  Dono de uma lavoura de cana, fabricando rapa­dura, açúcar-da-terra e pinga, sempre acudia os que iam atrás de doce pra temperar o café e a garapa dos meninos.  Entretanto, ti­nha por hábito dar mel de engenho só aos sá­ba­dos.  Durante a semana, podia-se comer rapadura, be­ber garapa, experi­mentar uma gostosa puxa, mas mel, não: só no sábado.  Chegasse quem chegasse atrás de mel, Honorão jamais abriu precedente.  Não havia razão plausível para tal atitude, mas era seu costume.  E este era sagrado.  O mais amigo dos amigos voltava de lá sem mel, a não ser no sá­bado.

Lá pelos anos vinte, ocorre que lhe chega ao engenho um tal Chico Me-Dá, mo­rador nas Bi­cas, perto da fazenda de meu pai.  Chico Me-Dá era tido e havido por botador de feitiço e por isso era temido pelos que o conheciam.  Ninguém ou­sava contrariá-lo.  E Chico chega justamente pedindo um pouco de mel num dia de se­mana.

Honorão, confirmando sua natureza de inflexível, quebrou pau no ouvido e não deu o mel.  E Chico saiu dali visivelmente contrariado.

De madrugada, foram acender a fornalha, mas esta não havia jeito de pegar.  Botaram quero­sene em cima dos bagaços de cana secos, dos gravetos, trouxeram uma tocha e deitaram em cima.  Levantara aquele rolo de fumaça, mas fogo, nada!  Aca­bou foi Honorão resignando-se em perder a garapa toda, que azedou.

- Isto tá cum jeito de feitiço! - alguém palpitou no caso.

Ouvindo um e outro e convencendo-se de que aquilo era coisa botada, Hono­rão mandou um positivo buscar Joaquim Paraguaio, curador de fama, meio-índio-meio-gente, morador ali no municí­pio de Conceição do Norte, exímio mandraqueiro e des­manchador de coisa ruim.

Paraguaio veio.  Chegou, benzeu a fornalha e disse a Honorão:

- Óia, mano - ele tratava todo mundo de "mano" - tá disamarrada a fornaia.

Todo mundo ficou curioso em saber o autor daquele malfeito.  E Paraguaio, que não declinava nomes, mas dava indícios, sentenciou:

- Você vai sabê quem foi qui fez o malfeito, pois por castigo ele vai caí no fogo - e riscou um palito, jogando na fornalha, que crepitou num fogaréu danado.

Dias depois, Chico Me-Dá estava dormindo numa cama de varas, e ao rolar du­rante o sono, caiu justamente no fogo aceso da sala onde dormia.

Vocês já imaginaram uma coisa dessas!?

 

       

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