PEDRO BOTO E OUTROS TIPOS
Liberato Póvoa
18/06/2005
Há certos tipos que acabam se transformando em patrimônio da cidade. Toda cidade que se preza, tem pelo menos um ou dois tipos característicos, geralmente daquela classe que os mais pedantes tratam de gentinha. É um tolo, um mouco qualquer e principalmente um cachaceiro, pois jamais vi cidade do interior que não tivesse o seu.
Em Dianópolis, existiam vários, sendo impossível, senão injusto, deixar de mencionar qualquer um. Às vezes, numa conversa descomprometida, a gente se lembra de um, e ajunta um retalho aqui e outro acolá para tentar reconstituir pelo menos um pedaço de sua personalidade.
O tipo cachaceiro de São José do Duro era Antonhão Pé-de-Janta (para não mencionar Domingos Cachaça, cujo nome dispensa comentários). Antonhão, não obstante sua compadragem com os influentes do lugar, acabou perdendo a vergonha, e se ainda não contei, vou contar as treitas de que se utilizava par sustentar o vício: desde beber e carregar o copo para trocar por cachaça até simular a morte de um neto para poder vender a mortalha.
Tirante Antonhão, uma dúzia, pelo menos, de tipos povoam a minha meninice e minha adolescência: Justina, cria da casa de Zé Anísio Leal, que virava bicho quando a chamavam de “porca”, mas, em compensação, delirava quando a chamavam de “corujinha”.
Chico Farinha-Seca, com sua inocência, recebendo sua aposentadoriazinha do Funrural e deixando-a nas mãos de alguém que conhece dinheiro, para pedir "uns cinco mil cruzeiro mode comprá uma taquim de fumo". Chico era o abnegado guia do cego Lucas, ali do Barreiro, e o conduzia todos os domingos à missa, com uma paciência que só ele tem, como se gente sua fosse.
Cazuza, que vivia em andrajos pela rua, pilando café na casa dos outros (que casa ele não tinha) ou errando nas chapadas da Abadia, escondendo seus “ferrinhos”, que eram guardados com ciúme e ganância como se fossem de ouro.
Berto, irmão de Cazuza, que arribava do Mato Seco, no quebrar da Barra, para vender misturas na rua e voltava com o balaio cheio de mamão, para depois verificar que todo quintal da cidade tinha pé de mamão carregado, explicando o porquê de não ter vendido nenhum.
Joaquim Cursino, gente lá de casa, escadeirado pelo trabalho e cheio de subserviência, trazendo agrados do mato para trocar por fumo, café, sal e outras coisas com o povo da rua.
Fico horas e horas relacionando cada um daqueles personagens, que, por si só, davam para se escrever páginas e páginas: os cegos Zé Traíra, João Marimbondo e Chico Luís, o louco Adivinhão, Né Velho (que morou décadas lá em casa), Cheiro (que não perdia jamais uma festa no meio da mocidade e só saía quando a festa acabava), Valfrido (todo conversador e cheio de um palavreado que demonstra uma inteligência invulgar) e muitos outros.
Uma figura, entretanto, que marcou toda a nossa geração foi Pedro Boto (aliás, muitos vinham cobrando-me umas linhas sobre ele). Pedro Boto era uma camarada baixo, cor de cuia, meio parrudo, coberto de pelancas (já me lembro dele velho), de fala ininteligível, mistura de fala com gungunado.
Como espécie de patrimônio da cidade, não tinha residência fixa: ora, dormia na casa de tio Dito; ora comia lá em casa; ora dormia nuns cômodos pertencentes à “Loja Póvoa” e que serviam de rancharia, e às vezes passava temporadas ali no Progresso, chácara que foi de tio Antunim e depois de tio Dito (e agora está dentro da rua). Vivia caminhando aqui pelas redondezas de casa, pedindo fumo e assustando nós, meninos, com seu ar zangado, que era só no aspecto, que Pedro Boto não era uma pomba sem fel incapaz de fazia mal a seu ninguém.
Uma noite, meu pai foi acordado por violentas pedradas na janela, e ao abri-la deparou-se com Pedro Boto: pálido, trêmulo, suado, ofegante, e foi logo falando aos berros:
- Berato! Berato! Cobra, Berato!
Tinha sido picado por uma malha de cascavel, quando perambulava ali nos morros do Barreiro, a coisa de um quarto de légua daqui. E, como que tangido pelo instinto de sobrevivência, Pedro Boto, que era tolo e tartamudo, teve a deliberação de matar a cobra e trazê-la, como que para mostrar que tipo de cobra era. Ele sequer sabia que havia soro (na época) para determinados tipos de cobra, e parece que uma coisa qualquer o guiou para que ele trouxesse o peçonhento rastejante.
Meu pai lhe aplicou uma injeção de anti-ofídico e mandou que ele dormisse lá em casa mesmo, para no dia seguinte ver como tinha reagido. De manhã, a esteira onde Pedro Boto dormia estava sem ninguém.
Pedro Boto morreu há coisa de trinta e tantos anos, na velha rancharia que lhe servia de abrigo quase sempre. Nós, que vivemos a época, quando fechamos os olhos, ainda sentimos como que um arrepio de medo do Pedro Boto, o pobre e inofensivo Pedro Boto, que a esta hora deve estar repousando no merecido descanso de sua sofrida existência, vivida de déu em déu pelas ruas do Duro.