TIO DIRICO E A MULA INCENDIÁRIA

Liberato Póvoa

13/03/2013

 

 

 

De mil oitocentos e noventa e poucos, tio Dirico era o único vivo da irmandade de meu avô Bené.  Remediado, que rico não era, mas casara-se com uma ricaça de família, de quem se enviuvaria mais tarde para casar-se, em segundas núpcias, com a velha Ana, que, viúva, também arranjara um encosto para viver o resto de seus dias.

Tio Dirico era o símbolo de uma geração extinta: dono de uma fazendinha perto do Jenipapeiro, lá no sertão de Conceição do Tocantins, dava a vida para não sacrificar uma rês de seu rebanho, preferindo passar de arroz branco, a tirar uma curraleirinha mirrada para comer o cirigado de carne seca.  Quando precisava apurar uns cobres para atender a suas precisões, é que sangrava uma vaquinha para vender a carne no comércio, reservando os rebotalhos de rejeitos para dar gosto ao de comer.

Quando a carne seca estava a três mil réis o quilo, entra tio Dirico na rua  tocando o burro de carga rua adentro, para vender as mantas gordas debaixo das mungubeiras, que ainda hoje existem lá na porta de casa.  Ali chegando e  soube que a carne seca em Barreiras estava a quatro mil réis, nem arriou a carga, e tocou pra lá, e precisou que alguns parentes fossem tocaiá-lo na Maria dos Reis - caminho de Barreiras - pois o velho queria vender sua mercadoria mais bem vendida, pouco se importando se Barreiras estava a mais de trezentos quilômetros, do outro de um gerais inóspito e seco, com mais de setenta quilômetros sem água e nagrejante de cascavéis.

Anos atrás, vem tio Dirico, na sua mula de arreios, cortando sertão para dormir no São João da Serra e chegar ao Duro pro almoço do dia seguinte.  Na garupa, a maca estofada com a rede bordada e a coberta de algodão; no arção da sela, forrada com o coxonilho, a capa de mangaba atravessada para prevenição de chuva.

O sol cozinhava os miolos, e tio Dirico seguia pensando na vida: o filho adotivo, Felisbino, assassinado, à-toinha, lá na Conceição; o sobrinho Dito mudara-se para Goiânia, puxado pelos filhos; os parentes mais chegados, mortos em 1919, durante o "Barulho" (como é conhecido o episódio de “O Tronco”), pela polícia goiana, por causa de política no tempo do mandonismo dos Caiado.

Mergulhado em suas meditações, tio Dirico não reparou a fagulha do cigarro de palha que saltou no coxonilho e passou para a garupa, começando a consumir a rede e a coberta; quando sentiu a súbita quentura na anca, a mula disparou, sendo contida muito longe, toda sapecada, e tio Dirico, com as costas penosamente queimadas, foi carregado para Goiânia, num táxi aéreo.  Tio Francisco mandou meu primo Elio, que conhecia Goiânia, acompanhá-lo.  Lá chegando, o sobrinho-neto "depositou-o" num hospital, voltando em cima do rastro, sem o cuidado de avisar os parentes que ali viviam.  Também não deixou com tio Dirico endereço algum, nem telefone, nem nada.

Tendo recebido alta, tio Dirico, acostumado com lugarzinho pequeno, vai saindo todo ancho.  O pessoal do hospital, pelas conversas dele durante o forçado  internato, inteirara-se da lonjura de onde viera e sabia que ele não conhecia Goiânia, nem tinha a mínima noção de cidade grande.  Mas o velho, simplório e talvez pensando que a vida da capital era o ramerrão diário do interior, onde todos conhecem todos, chegou todo sério e falou com o primeiro que passava:

- Agora, cês me leva na casa de Dito!

Endereço, não tinha: conhecidos outros, pior; e não adiantou ele explicar que Dito era seu sobrinho, marido de Irene de João Rodrigues, ex-prefeito do Duro e pessoa muito conhecida.  Chegou a dizer que o povo dai de Goiânia era tirado a besta, pois não era nem possível desconhecer quem era Dito.

Não sei como conseguiram localizar tio Dito (acho que o acaso fez com que aparecesse um conhecido no hospital), e carregaram-no pra lá.

Depois de se enviuvar pela segunda vez, tio Dirico passou a viver na rua e ultimamente vivia clamando que as coisas andavam ruins, pleiteando uma aposentadoria pelo Funrural.  Parecia que se a aposentadoria não chegasse, ele morreria de fome, com sua cantilena eterna de pingar misérias.

Viúvo e sem filhos, vivia era da ajuda de um sobrinho, que lhe dava o sustento da boca, ou de outro parente, que o acudia com o fumo e o café.  Morando em Belo Horizonte, sempre que eu vinha de férias, chegava tio Dirico pedindo-me para "desatolar o processo da aposentadoria", pois aquele dinheirinho estava fazendo-lhe uma falta danada.  Como eu trabalhava no serviço público, sua imaginação simplória certamente era de que uma palavra minha lá em cima resolvia alguma coisa.

Tempos depois, numa das minhas vindas à terrinha, soube que tio Dirico morrera.  Um dos seus velhos achaques levara-o à cova.  Mas morrera tranqüilo e - para descargo de minha consciência - aposentado pelo Funrural.

 

       

Sair