ROSENDO CARA-SUJA

Liberato Póvoa

25/08/2013

 

Dos apelidos de ocasião, daqueles que se costuma pôr na gente em determina­dos casos, um ficou por muito tempo sem que eu pudesse alcançar o significado.  Quando me chamavam de "canelas de siriema", eu sabia que era devido às minhas pernas finas; mas quando diziam que eu era um "Rosendo Cara-Suja", ficava medi­tando o porquê do apelido.  Depois, indagando dos mais velhos, meu mano Osvaldo, estudioso da nossa gente, contou-me que o personagem inspirador do apelido de fato existiu.

Nos tempos em que, tendo passado a Coluna Prestes, os jagunços de Abílio Batata e outros tipos de valentões no sertão aqui de São José do Duro, ficou muito popular a figura de Rosendo, morador nas terras da Beira d'Água, a duas léguas da­qui.  O nome lhe veio a propósito.  Para ele, água só no copo, e só tomava banho quando a chuva o surpreendia em viagem, e seus pés só viam água quando atraves­sava um córrego.

Metido a valente, Rosendo Cara-Suja, que - dizia o povo - não gostava do ape­lido, andava sempre com uma garrucha de dois canos, um facão e um punhal enfia­dos na cinta, com o cinturão apinhado de balas, que os tempos eram brabos, mercê da jagunçama que ainda campeava por ali.  Sua figura caricata, apatrochada de ar­mas, despertava a chacota das pessoas, que riam longe dele, pois sua fama de valen­tão po­dia uma hora achar um cristo.

Certa vez, numa festa, surgiu a oportunidade de lhe testarem a decantada va­len­tia de costurar desafetos no punhal e pisar impunemente nos calos alheios, que, ti­rante ele, todo mundo só tinha mesmo era frouxura.  Após unias talagadas de pinga, um valente marchou de passo duro pra cima dele, disposto a agarrá-lo, a despeito da­quele arsenal que carregava na cinta.  Rosendo percebeu que o homem não estava ali só de propaganda, e, segurando a garrucha na mão direita e o facão na esquerda, gritou aflito para a mulher:

- Vem cá ligeiro, Senhorinha!  Pega estas armas, senão este desgraçado me toma elas!. . . - e jogando as armas para Senhorinha, largou a valentia de

uma banda e, resignadamente, levou sonoros tabefes.

Mas conseguiu livrar as armas... Rosendo tinha uma égua, que era tratada com mais carinho do que um filho, e até chegou a comprar uns metros de bulgariana ba­rata e fez uma roupa para ela, isto para livrá-la das mutucas, que sempre viviam ata­za­nando sua egüinha.

A compra da bulgariana e o feitio da roupa foi depois de ver seu precioso animal sofrer com as ferroadas do incômodo inseto, muito abundante naquela quadra de ano.  Antes da roupa, Rosendo, que era muito engenhoso, tivera uma luminosa idéia: arranjou uns molambos velhos, misturou com palha seca de arroz, fez um círculo em torno da égua e tocou fogo.  Assim ele conseguiu corrercom as mutucas... e com a égua.

Conta-se muitas patacoadas de Rosendo Cara-Suja, todas com rompantes de valentia e cheias de peculiaridades que só ele sabia improvisar.

Certa ocasião, por causa de um bate-boca numa festa de mutirão, Rosendo foi desafiado por um vizinho.  Fazendo valer sua fama de valentão - e, a bem da ver­dade, tinha estampa por causa dos apetrechos que portava - empunhou sua garrucha e o fa­cão, cortando com este o vento, assim como que dizendo "não vem, que morre!".  Mas o desafeto, talvez conhecendo o caso anterior da froxura de Rosendo, não se in­timidou e foi em cima dele, cobrindo-lhe a cara de tapas, que ele recebeu sem tugir nem mugir, não usando as armas nem como escudo para se livrar dos so­papos.

Acabada a briga e serenados os ânimos, vieram inquiri-lo:

- Uai, Rosendo, como é que você deixou o homem bater em você desse

jeito?

Mas ele não perdeu p compostura, redargüindo:

- ó xente, cê num viu qu'eu tava co'as duas mão ocupada não?

lmpagável, a figura de Rosendo fazia-lhe jus ao nome.  Nem o rosto ele se dava ao trabalho de lavar.  Não digo o rosto: nem a boca.  Achava simplesmente desneces­sário cumprir os mais elementares preceitos de higiene; e até se zangava quando lhe falavam em lavar pelo menos a boca de manhã:

- Você nem ao menos lava a boca antes de tomar café de manhã, homem de Deus?

E ele respondia em cima da bucha:

- E por um acauso eu cumi estrume?

 

       

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