QUARESMA

 Dídimo Heleno Póvoa Aires

 

 Como o leitor deve ter percebido, nos meus últimos artigos tratei de temas religiosos. Tenho plena consciência de que é um assunto delicado, que envolve paixões e do qual muitos preferem manter distância. Recebi vários e-mails e telefonemas de pessoas conhecidas e desconhecidas, que se manifestaram, umas de forma positiva, outras negativamente, a respeito do meu artigo “A vida eterna”, publicado neste Jornal. É gratificante conhecer a opinião dos leitores, que de forma livre e sincera expressam suas idéias a respeito do assunto. Mesmo por que, sendo com base no princípio democrático que escrevo, também deve ser nele que devo buscar conforto para ouvir as críticas. Por se tratar de tema polêmico, fiquei surpreso com a quantidade de elogios.

 

A religião, ao contrário do que se possa imaginar, é assunto que muito me fascina. Tanto assim é, que gosto de discutir sobre o tema, embora não me considere religioso. Aliás, religião só tem graça quando é discutida por leigos, pois os “profissionais” são sempre parciais e cada um vende o seu peixe da forma que melhor lhe aprouver. Também é preciso dizer que respeito qualquer crença e até a descrença, afinal esse é um direito garantido constitucionalmente.

 

Concordo com Karl Marx, quando ele diz que a religião é o ópio do povo. Embora ele tenha dado à frase uma conotação negativa, eu também a vejo positivamente, visto que a muitos a religiosidade faz bem, deixando o fiel num estado de torpor elevado. A outros, o efeito causado é de droga pesada. De qualquer forma, juntamente com o Direito, a religião funciona como eficiente meio de controle social. O que seria da humanidade se não houvesse a morte e a incógnita sobre o que pode vir depois dela? O homem não é pior porque existe o temor do desconhecido e só não se cometem ainda mais homicídios por medo do castigo de Deus. Não fosse isso, matar seria um dos esportes preferidos.

 

Agora, que vivemos o período da quaresma, a religiosidade aflora nas pessoas. Aliás, nada mais reconfortante. Este é um tempo de reflexão, caridade e penitência, tempo em que os fiéis reservam para “sofrer” um pouco. Uns param de beber, outros de comer carne e outros, mais fervorosos, deixam até de fazer sexo. Inclusive a data do início do carnaval é escolhida convenientemente, de forma que termine justamente na quarta-feira de cinzas. Para o sujeito que vem entornando todas, desde o Natal, nada mais oportuno do que dispor de quarenta dias para limpar o organismo intoxicado, com direito, ainda, a posar de bom filho de Deus. Penitência, mesmo, seria se começasse a abstinência ainda na sexta-feira anterior à folia. Aí, sim, conheceríamos os cristãos penitentes.

 

Equivalente à nossa quaresma é o mês do ramadã, vivido pelos muçulmanos. Mas lá, o negócio é mais pesado: eles passam o dia inteiro sem comer e se abstêm de sexo. Bebida alcoólica é proibida todos os dias do ano. Mas esse tipo de sofrimento não é recomendável ao mundo capitalista ocidental, afinal a indústria alimentícia e de bebida reclamaria profundamente da falta de lucros.

 

Talvez fosse mais interessante se os cristãos se propusessem a fazer um pequeno esforço e fossem menos hipócritas, intolerantes, preconceituosos e invejosos durante o ano inteiro, e não apenas em quarenta dias. Não adianta freqüentar templos, rezar dia e noite e praticar todo tipo de atrocidade contra o próximo. Este é o maior sacrifício que se pode fazer nos dias de hoje: ser bom. O significado da quaresma é maravilhoso, mas deve ser lembrado durante todos os dias da vida.  

 

Embora não estivesse disposto a fazer qualquer penitência neste período, descobri que, por via indireta, acabo por fazê-la. Para todo amigo que ligo, convidando para tomarmos uma cerveja, recebo como resposta a impoluta frase: “estou de quaresma”. Pior do que tomar uma inocente cervejinha é não poder compartilhá-la com os amigos. Não deixa de ser um sacrifício. Afinal, como ensinou Jesus Cristo, o mal não está no que entra pela boca, mas no que dela sai.



 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado.

 

 

       

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