CAZUZA 

 

Liberato Póvoa

15/11/2006

 

Desde que me entendi por gente, Cazuza já perambulava nas ruas atrás de não sei o quê.  Freqüentava a casa de todo mundo aqui do Duro, mas fazia ponto na calçada de Osório Coutinho, ao lado da velha igreja, onde ficava horas e horas conferindo seus ferrinhos: argolas, pregos, pedaços de flandres e coisinhas de metal que achava pelas ruas.

Louco, acho que de nascença, Cazuza era uma pomba sem fel: calmo, olhar pregado no incerto, não mexia com seu ninguém, salvo quando provocado por Manoel de Joaquininha, Guducha, tio Dema, e outros rapazolas, que, só para atazaná-lo, subtraíam-lhe um dos ferrinhos que ele guardava com descomedida ganância.

Aí, ele se desesperava, mas não atacava ninguém: clamava e chorava em altos brados, até que encontrasse o prego enferrujado ou o parafuso imprestável, que para ele eram ouro.  Outras vezes, a turma, para colocar-lhe um fim no sofrimento, apresentava-lhe um exatamente igual, num doce e propositado engano:

-  T’aqui, compadre, seu ferrinho!

Não fumava, não bebia.  Mas adorava pilar café, que naquele tempo não havia essas facilidades de o café já vir torrado e moído.  Se adorava pilar café, era porque, nos momentos em que ficava só, raspava a mão no fundo do pilão e jogava na boca um punhado para saborear aos poucos.  Pedia - e até implorava - que o deixassem pilar café.  Ciente de sua fraqueza, e honesto, apesar de louco, Cazuza já pedia que mandassem alguém para vigiá-lo.  Muitas vezes montei guarda junto ao pilão, espiando Cazuza, que me contava casos desconexos, falando dos “profetas da Abadia”, das “caveiras de viola” e outras coisas de sua insana imaginação, não conversando coisa com coisa.

Sempre sujo, ensebado, Cazuza despejava na fralda da camisa a comida que lhe davam e sala comendo rua afora.  A roupa acabava-se-lhe no corpo, esmolambada pelo uso e pelas pontas de pau, quando se embrenhava nas chapadas da Abadia para esconder seus miseráveis teres.  Quando ganhava uma roupa nova, juntava-se muita gente - uns, para ajudar; outros, só de farra - para levá-lo ao córrego da Barra, dar-lhe um banho e vesti-lo à força.  O corte de cabelo era precedido da mesma novela.  Mas a barba ele próprio fazia, arrancando à unha, fio por fio, mirando-se no fundo de uma lata de talco.

Tinha pavor de soldado; corria até de arma de brinquedo, e certa vez, ao mostrar-lhe um revólver de plástico que ganhara de presente, recebi um violento murro nas costas, que caí entalado, sem fala.  Mas quem bateu não foi o compadre Cazuza (como o chamávamos), foi o pavor doentio de armas.

Chovesse ou fizesse sol, Cazuza jamais deixou de descer a serra, a pé, para ir à romaria da Sicupira, a cinco léguas da rua, e dizem que até à do Bonfim, que fica lá muito longe, pros lados de Natividade.

Dava pena ver a molecada atazanar-lhe a paciência: “Cazuza, cadê a tesoura?”.  Não sei por quê, mas quando lhe faziam esta pergunta, ele se enfezava e 9% jogava pedras, na sua justificada irresponsabilidade de louco.  Bem assim, quando o mandavam rezar, ele respondia que era “maçom pro lado da Igreja”.

Morando na rua e dormindo em qualquer lugar, embora tendo em Teodoro e Berto dois irmãos trabalhadores militando na lavoura, Cazuza raramente ia aonde estavam os seus.  Quando saía da cidade era para guardar seus ferrinhos nos “escondidos” da Água Boa e para trazer notícias dos “profetas da Abadia”.

Cazuza, mercê das chuvas nas costas e da solama a quase lhe arrancar o couro nas chapadas do Estreito, adoeceu e ficou com uma tosse convulsiva e braba, que o fez aquietar-se, como jamais ocorrera.  E uma tarde, quando jogávamos bola na praçona, vimos frechar gente na casa de Marcos Rodrigues: compadre Cazuza acabara de morrer, deitado no corredor.

Até o jogo de bola parou, e uma coisa ruim ficou assim engasgada na minha garganta.  Muita gente chorou a morte de Cazuza, cuja memória é reverenciada intimamente com muito carinho e cuja imagem parece estar ainda ali de pé, no quintal de cada casa aberta, socando café.

Dos personagens que povoam a memória dianopolina, Cazuza é aquele que, não obstante não tenha feito nada de especial para marcar sua passagem, nem tenha se transformado em símbolo de nada, representa não sei como nem por quê, uma grande e misteriosa força na evocação da meninice de todos aqueles que o conheceram.

Não sei se existe santo louco.  Mas se existir, não tenho dúvidas de que Cazuza é um deles, pelo bem que sua lembrança traz à alma de todos nós.

       

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