ANENCEFALIA E HIPOCRISIA

 DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*

 07/05/2005

 

Nos últimos tempos, um assunto bastante polêmico tomou conta da mídia: a permissão do aborto para evitar o nascimento de criança sem cérebro, a anencefalia. Como sempre ocorre nessas ocasiões, a Igreja se manifestou veementemente, alegando que ao homem não é permitido retirar a vida de qualquer ser humano.    Acontece que, nesses casos, a criança tem apenas alguns minutos de vida após o parto, não havendo possibilidade de sobrevivência. Em nome desse mísero tempo, os religiosos acham que a gestação não deve ser interrompida. Sem contar que a mãe corre, muitas vezes, risco de perder a vida nesse processo todo.

 

É preciso dizer que a fé das pessoas deve sempre ser respeitada. Mas quando há um certo fanatismo e uma tendência de imposição de crenças, a hipocrisia caminha sempre ao lado. Os religiosos acham que todos são obrigados a acreditar no que eles acreditam, e pronto. Eles estão certos e não se fala mais nisso, afinal têm ligação direta com Deus, com procuração assinada e tudo, o que lhes garante dizer o que é certo e o que é errado aqui embaixo. Não deixa de ser pretensão. Mas, quem somos nós, meros mortais, para discordarmos dessas privilegiadas autoridades?

 

O nosso Código Penal, de 1940, alterado em 1984, deixa de punir o aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da mãe, ou quando proveniente de estupro e haja consentimento da gestante. Ora, se para esses casos é permitido o aborto, por que não no caso de anencefalia, que parece ser tão grave quanto? Outra vez a hipocrisia. Outra vez a intolerância descabida. Sem contar o grande sofrimento psicológico da mãe e da família, que aguardam o nascimento de um ser que não possui cérebro, sem qualquer chance de sobrevivência. É cruel saber que, ao invés de levar o bebê para casa, a mãe a levará para o cemitério, logo depois do nascimento. O que se quer, na verdade, é oferecer à mãe a possibilidade de escolher se prefere, ou não, dar continuidade à gestação. Nesse caso, não se impõe o aborto como regra, mas como opção. Mesmo assim, os religiosos se revoltam com tal possibilidade.

 

O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, havia concedido liminar permitindo o aborto em casos de anencefalia. Pouco depois, foi ela cassada pelo mesmo Tribunal Excelso, sob o argumento de que um assunto de tal monta não poderia ser resolvido liminarmente. Houve discussão, os ânimos ficaram exaltados, mas a decisão de não se permitir o aborto foi mantida. No Congresso Nacional, onde pululam religiosos de todas as facções, falar em questões como essa é comprar briga. Da mesma forma acontece com a utilização de células tronco, que poderiam auxiliar no salvamento de muitas vidas preciosas, mas que, igualmente por motivos religiosos, encontra barreira quase intransponível no Legislativo*.  

 

Quando age assim, a religião presta um desserviço à sociedade. Deus deu inteligência ao homem para que ele descobrisse a melhor forma de viver em grupo, de procurar resolver suas mazelas sem incomodá-Lo a todo instante. Por isso, Ele nos brindou com o livre arbítrio. Mas muitos insistem em dar satisfação de tudo o que fazem, utilizando-se de deduções mirabolantes, conforme suas convicções. Muitas religiões chegam ao absurdo de condenar o uso da camisinha, mesmo num mundo que se encontra devastado pela Aids. É um paradoxo incrível: a inteligência que nos foi oferecida pela infinita bondade do Criador é transformada em ignorância e fanatismo, em nome desse mesmo Criador. Ele deve ficar horrorizado com tudo isso!   

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* Coincidentemente, algum tempo depois da publicação deste artigo no Jornal do Tocantins, em 15/12/2004, o Congresso Nacional, sensível ao clamor de grande parte da população, aprovou lei que permite a pesquisa com células tronco, o que representa uma grande conquista da sociedade brasileira. 

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado.

 

       

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