Lições de Freyre
DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*
14/10/2007
Depois da absolvição secreta de Renan Calheiros, é importante que façamos uma digressão histórica para entendermos um pouco, só um pouco, do nosso grande pendor à desordem, à esculhambação, ao parasitismo, à lerdeza e à corrupção. Para tanto, é imprescindível fazer uma leitura de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Num artigo recente, intitulado “Por que somos assim”, discorri sobre alguns aspectos de nossa personalidade, enquanto brasileiros. Fui, inclusive, criticado por isso num outro artigo escrito por um leitor.
No Brasil, diariamente vemos um pouco do nosso caráter estampado nas páginas dos jornais e na tela da TV. Uma nova pesquisa, divulgada recentemente, mostrou a quantas anda a cabeça do brasileiro. Os menos escolados (a maioria do povo) são os mais condescendentes com a corrupção, com o desrespeito e com a vileza. Para esses, o político pode usar o cargo em benefício próprio (o que explica o sucesso de Maluf e asseclas). Para outros, é certo recorrer ao jeitinho para resolver problemas, como o de se livrar de uma multa; outros acreditam que a polícia está certa em bater nos presos para conseguir confissões; e, por fim, também acham que os programas televisivos que fazem críticas ao governo devem ser proibidos. Eis aí a razão da popularidade do nosso Presidente continuar bem, com viés de alta.
Mas, lendo Freyre, vê-se que parte de nossos problemas é, mesmo, atávico. A herança adquirida de nossos colonizadores não é, definitivamente, a melhor. O português era um preguiçoso. Freyre, citando Clenardo, diz: “se há povo algum dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele exista ... Esta gente tudo prefere suportar a aprender uma profissão qualquer”.
Em outro trecho, o autor vaticina: “colonizou o Brasil uma nação de homens mal nutridos. É falsa a idéia que geralmente se faz do português: um superalimentado ...”. Como se vê, o nosso colonizador não era lá essas coisas e o povo brasileiro, até hoje, continua não sendo motivo de muito orgulho. Essa pesquisa apenas corrobora o que já se sabia: os governantes têm a seu favor uma horda de analfabetos e mal instruídos a lhes garantir mandatos em cima de mandatos.
E quando se fala em analfabetos, no Brasil, pensa-se logo naqueles que não sabem ler ou escrever. Mas o teste feito pela Justiça Eleitoral, que busca aferir a capacidade do candidato de se eleger, exige apenas a assinatura do próprio nome, que muitos apenas desenham, além de algumas perguntas idiotas, que qualquer criança responderia. Como diria o poeta Mário Quintana, “analfabeto é aquele que sabe ler e não lê”. Desses o Brasil está abarrotado.
Uma das últimas, entre tantas, foi a troca de e-mail dos ministros Ricardo Lewandowski e Carmem Lúcia, em plena sessão no STF, onde se iniciava o julgamento histórico dos “mensaleiros”. Enquanto o procurador-geral da República Antônio Fernando de Souza lia sua denúncia e o país parava para ouvir, eles simplesmente trocavam fofoquinhas, intrigas e insinuações graves, inclusive contra um outro colega ministro, também presente. Isso tudo me deixou estarrecido; achei que ministros do STF não perdessem tempo com esse tipo de bobagem, principalmente durante o trabalho. Mas eles são, acima de tudo, brasileiros. Portanto, estão sempre propensos à galhofa.
Como mais uma vez ensina Freyre, “engana-se, ao nosso ver, quem supõe ter o português se corrompido na colonização da África, da Índia e do Brasil. Quando ele projetou por dois terços do mundo sua grande sombra de escravocrata, já suas fontes de vida e de saúde econômica se achavam comprometidas. Seria ele o corruptor, e não a vítima”. Os mais descarados podem até dizer que a culpa é do colonizador. Pois é. Acontece que eles, os portugueses, melhoraram muito de lá para cá. Nós ainda estamos no século XVI.
Sei que pelo fato de nossa economia estar sendo reconhecida internacionalmente (o único argumento atual), muitos discordarão de mim. Porém, como diz um adágio citado pelo próprio Freyre, “por fora muita farofa, por dentro molambo só”.
*Dídimo Heleno Póvoa Aires – advogado, membro das Academias Palmense e Tocantinense Maçônica de Letras.