A solidão do abstêmio

 

 

DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*

06/07/2008

 

Tenho trinta e sete anos e aos quinze mantive o meu primeiro contato com a cerveja, momento em que travamos uma relação imediata de amor e paixão. A partir daí, não me lembro o final de semana em que fiquei sem degustar minha loira, numa simbiose antropofágica, em que nos consumíamos mutuamente. Nos últimos tempos, nosso caso começou a ficar meio conturbado, afinal todo relacionamento tem suas crises existenciais.

Os sintomas vieram através da insistente pressão arterial alterada, acompanhada pelo colesterol desregulado, a glicemia estratosférica e as triglicérides nas alturas. Resolvi cortar relações com a cerveja por um tempo, em nome da saúde. Agora percebo com mais clareza que as propagandas veiculadas na televisão são todas absurdamente enganosas. Aquelas mulheres lindas que aparecem nos incentivando a beber certamente não ingerem uma gota de álcool, caso contrário não seriam tão belas. Os homens, igualmente “sarados”, nunca conseguiriam manter aqueles corpos com a ingestão cavalar de cevada, trigo e glucose, devidamente fermentados. É tudo mentira. Corpo de quem ama cerveja é corpo encorpado, liso, inchado e amarelado, como a própria bebida.

O fim desse longo namoro resultou numa imediata e surpreendente resposta do meu organismo, que reagiu com alegria à nova vida sem álcool. Logo no primeiro mês emagreci quase quatro quilos, passei a fazer exercícios diários e minha disposição aumentou vertiginosamente. É verdade que nos últimos tempos andava traindo minha loira com uma dosinha de cachaça aqui, outra ali – erro crasso.

Mas o fato é que nós, “alcoólatras moderados”, cometemos a insensatez de tirarmos o atraso, ingerindo em dois dias (sexta e sábado) o que deveríamos ingerir durante sete, em doses esparsas e comedidas. Nosso caso é o mesmo dos futebolistas de finais de semana, que jogam um dia e ficam os outros seis entrevados.

Mas a vida sem a cerveja, por incrível que pareça, também pode ser maravilhosa. Tomei gosto por programas que simplesmente não imaginava fazer, como um frugal passeio pela cidade nos finais da tarde, acompanhado pelo meu filho e minha mulher. Estou apreciando coisas que nunca havia apreciado. Andava sempre muito ocupado com os churrascos e as cervejas para perceber a beleza à minha volta. Adiantei consideravelmente as leituras atrasadas, livros que mofavam na estante aguardando serem lidos. Estou assistindo a mais filmes, beijando minha esposa com mais freqüência, fungando mais no “cangote” do meu filhinho.

Porém, como nem tudo são flores, fui completamente abandonado pela maioria de meus amigos. Tornei-me um pária. Somente aqueles que tomaram a mesma atitude permanecem em contato. Os caras sumiram. Sem beber não sirvo como companhia. Um até me disse que sente vergonha em me ligar quando está bebendo; fica constrangido de eu perceber sua embriaguez. Fui tachado de chato por outros. Alguns rezam ao deus Baal para que eu volte à vida boêmia, que levante logo da tumba em que me enfiei. Com exceção de minha mulher – como era de se esperar – praticamente não encontrei qualquer incentivo para continuar abstêmio. O pior não foi enfrentar a dura separação de minha cerveja, mas a indiferença dos amigos.

E o mais grave é que o interesse em reatar o romance não volta. Acordo no sábado pela manhã e me surpreendo com a falta de vontade de tomar uma cerveja. Ando muitíssimo preocupado. O tempo passa e eu nada. Nada de reagir. E os amigos num silêncio tumular... E eu aqui, sóbrio, lúcido, sereno, chatíssimo...

Quando eu voltar a beber estarei respaldado por algumas lições adquiridas durante os dias de abstenção. Andei observando o efeito etílico em alguns amigos e percebi que devo me esforçar ao máximo para conversar menos quando estiver bêbado; procurarei manter a serenidade e evitar cuspir na cara do interlocutor; prometo fazer uma recapitulação mental e tentar me lembrar de que aquela é a décima vez que repito a mesma história; quando perceber que estou ficando alterado, pedirei aos deuses que me concedam a força de voltar cedo para casa. Mas, principalmente, que eu nunca deixe de ligar para os meus amigos abstêmios. Eles continuarão meus amigos, mesmo que eu tenha de conviver com suas insuportáveis presenças sóbrias. Nada é mais agressivo a um bêbado do que um amigo sóbrio ao seu lado, observando os seus movimentos, enxergando de perto sua insensatez, o seu ridículo pensamento filosófico de boteco, as suas constrangedoras apologias ao consumo alcoólico e a sua triste ignorância com relação aos prazeres da vida abstêmia.

Um dia voltarei a beber, mas não sem as duras seqüelas de tão traumática experiência. Parte de minha geração é bêbada e a sobriedade a agride profundamente. Prometo embriagar-me com serenidade daqui em diante. Estou aprendendo a entender melhor os seres humanos que me rodeiam. Muitos se tornaram bem feios quando vistos por meus olhos e mente sóbrios, desanuviados, límpidos... Horrivelmente límpidos...

*Dídimo Heleno Póvoa Aires advogado, membro das Academias Palmense e Tocantinense Maçônica de Letras.

 

 

       

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