Anencéfalos e acéfalos

 

DÍDIMO HELENO PÓVOA AIRES*

24/08/2008

 

O Supremo Tribunal Federal realizou, recentemente, uma audiência pública sobre o aborto de fetos anencéfalos, aqueles que não desenvolvem o cérebro. Por incrível que pareça existem muitos que defendem a manutenção da gravidez e o nascimento de um bebê que terá, no máximo, poucos dias de vida. Segundo alguns profissionais ouvidos na referida audiência é impossível a sobrevivência de alguém que nasça sem cérebro. E isso não é óbvio?

Como sempre, uma horda de religiosos defende o nascimento da criança sem cérebro. Interromper a gestação seria um desrespeito à lei divina. Em alguns momentos, a fé transforma os seus detentores em acéfalos. Como impingir um sofrimento atroz à mãe durante tanto tempo, sabendo que traz no ventre um filho que não sobreviverá? Ao nascer, a criança será velada e não comemorada. Haverá um enterro e não um nascimento.

Entendo que tais questões deveriam ficar ao arbítrio, único e exclusivo, da própria mãe. É ela quem deveria dizer se quer, ou não, levar adiante uma gestação nessas condições. Como não há lei permitindo esse tipo de aborto, deve-se recorrer à Justiça para se obter tal autorização. E as  igrejas, de modo geral, querem exigir que a mulher leve adiante esse martírio. Aliás, martírio é bem a cara das religiões.

O aborto é assunto cercado de hipocrisia. Legal ou não, milhares de mulheres praticam-no todos os anos, às escondidas, utilizando meios precários e medievais. E o governo e os religiosos fazem de conta que não enxergam. Muitas mães estão morrendo simplesmente porque não têm o direito de decidir sobre algo que acontece com o seu próprio corpo. Não seria melhor legalizar e prestar todo o apoio necessário? Do ponto de vista religioso isso é algo impensável.

Em tudo as religiões metem o bedelho. O uso de camisinha é repudiado; pesquisas com células-tronco nem pensar; aborto de anencéfalo é proibido; sexo antes do casamento, pior ainda. Se seguíssemos tais preceitos, estaríamos parados no tempo, ou talvez ainda vivêssemos nas cavernas.  

Há relatos de mulheres que tiveram filhos anencéfalos, os quais sobreviveram por algum tempo. Acredite ou não, isso é motivo de comemoração por parte de muitos defensores dessas gestações bizarras. Uma criança nessas condições não vive, vegeta. Não há possibilidade de perceber nada à sua volta, de esboçar qualquer emoção.  Mas ela tem que “viver”, nem que seja um pouquinho só, apenas para satisfazer a “vontade divina”.  O homem não tem o direito de tirar a vida, dizem os defensores. Que vida?, poderíamos perguntar.

A grande verdade é que somente à mulher caberia decidir se quer, ou não, levar adiante sua gestação. Teria que ser um direito seu de escolha. Nem as religiões, a Justiça ou o vizinho deveriam lhe dizer o que fazer. Já que não é assim que funciona, é preciso amparar juridicamente aquelas que querem interromper a gravidez, mas, por conta da fé alheia, são obrigadas a parir um monstro.

As religiões devem funcionar como clubes. Quem faz parte de alguma deve, sim, seguir suas regras. Somente aos “associados” cumpre tal obrigação. Querer que toda a sociedade se submeta a isso é um absurdo. Se a mãe é religiosa o suficiente para suportar o infortúnio de tal gravidez, problema dela. Mas se não quiser, de igual forma lhe deve ser dado o direito de por fim a esse sofrimento. Para tantos, a vontade da mulher só será respeitada se tiver de acordo com a imposição religiosa.  

Num país laico como o nosso, onde em tese não há uma religião oficial, embora haja até padroeira com feriado nacional, temas religiosos deveriam ficar restritos aos templos, sinagogas e igrejas. É muito complicado não ser religioso em meio a uma multidão de fanáticos. Numa sociedade em que desejar a mulher do próximo é pecado e o uso de camisinha leva direto ao inferno, interromper uma gestação soa como coisa do demônio. E ainda somos obrigados a digerir a infame explicação de alguns crentes, afirmando que trazer um filho anencéfalo no ventre é uma prova divina. Coitada da mulher que, apesar de possuir um cérebro para ajudá-la a pensar com a razão, é exposta à irracional emoção de muitos acéfalos vivos.

 

*Dídimo Heleno Póvoa Aires advogado, membro das Academias Palmense e Tocantinense Maçônica de Letras.

 

       

Sai